Uma das coisas de que me posso orgulhar é de nunca ter partido ou fracturado um osso. Causa-me impressão quando vejo alguém com um braço ou uma perna engessados, ou com uma tala num dedo, ou uma ligadura de qualquer espécie. Além da invalidez temporária, há o senão de não poder lavar ou coçar a parte lesionada, o que além de pouco higiénico é ainda por cima incómodo. A isso juntam-se os meses de recuperação acompanhados ou não de fisioterapia, o que significa que o trauma físico e psicológico pode prolongar-se por meses ou mesmo anos, dependendo do caso.
Já dei algumas quedas feias e sofri choques com algum impacto, mas tive a sorte de resistir. E se a sorte tem um papel importante nesta lotaria dos acidentes, a resistência óssea não é de desprezar. Como sou um rapaz que sempre gostou de leite, armazenei uma quantidade respeitável de cálcio para assegurar a integridade do meu esqueleto. O gosto dos jovens em desenvolvimento pelo leite, o alimento mais completo, é variável. Existem crianças que destestam o seu sabor insonso, e adultos que não tocam no leite branco, aquele que providencia a dose ideal de cálcio para o desenvolvimento dos mais pequenotes e à saúde dos mais velhos.
A recente crise do leite em pó para crianças lactentes em Macau dá que pensar. As mulheres chinesas, especialmente as mais jovens, recusam-se a amamentar os filhos por uma questão de estética, apesar do leite materno ser o mais nutritivo e eficaz na construção do sistema imunitário do recém-nascido, e que qualquer médico que se preze recomenda nos primeiros seis meses de vida do bebé como único alimento. Quando questiono as minhas colegas sobre o facto de não amamentarem os seus filhos elas desculpam-se com o facto de “não terem leite”. Quando insisto que a aleitação requer estimulação, riem-se e quedam-se pelo silêncio. Estas coisas da tradição chinesa não são contas dos “kwai-lous”. Elas tratam da sucessão como querem, e não temos nada com isso.
O tal cálcio presente no leite na ordem das 1200 mg por litro ajuda não só ao crescimento e ao fortalecimento dos ossos como ainda contribui para a saúde dentária e ao desenvolvimento do cérebro, e por inerência à capacidade intelectual. Daí que o leite se torne num complemento indispensável a crianças em idade escolar, e muitas escolas o providenciem gratuitamente aos seus alunos. Algumas crianças preferem a sua versão aromatizada com chocolate, baunilha, morango e outros sabores, em deterimento do leite branco, que “não sabe a nada”. Pessoalmente nunca fui muito esquisito, e adoro beber fartas copadas de leite fresco e branquinho. Só não simpatizo com leite morno ou quente, a não ser acompanhado de café, cacau ou cereais. Quando quero fazer uma “limpeza” – normalmente depois de uma noite de álcool, vício e amor carnal – faço uma desintoxicação à base de leite e dos seus derivados.
E por falar em derivados, existe uma opção muito variada para quem não gosta de leite branco: iogurtes, manteiga, natas, requeijão, etc. É outra forma de adquirir o essencial cálcio, se bem que adicionado de açucar, gordura, corantes, aromatizantes e outras coisas más para a saúde. Só quem é alérgico à lactose, uma deficiência deprimente, precisa de procurar os nutientes do leite noutros alimentos – tarefa ingrata. Não me lembro de alguma vez ter bebido leite em pó, e a própria ideia causa-me estranheza: leite e pó são coisas que não combinam. Quando penso em “pó” penso em talco, cocaína ou uma casa suja. Nada a ver com leite.
Em Macau muitos dos locais não gostam de leite de vaca, que consideram ter um sabor forte, que consideram muito “sôk”. Esta palavra de tradução difícil designa um certo travo a gado que se encontra na carne, especialmente dos ovinos. É curioso que há quem rejeite beber leite por ser “sôk”, mas não se importe de comer carne de carneiro, especialmente no Inverno, devido às suas características alegadamente “térmicas”. Mesmo assim esta carne é normalmente acompanhada de temperos que disfarçam o seu sabor desagradável para o paladar local. O leite que os ocidentais em geral ou os portugueses em particular bebem é muito “sôk”, bem como os próprios estrangeiros, que cheiram muitas vezes “a vaca”.
Como alternativa, os chineses preferem o leite de soja, de proteína vegetal. A Vita, empresa de bebidas sediada em Hong Kong, é a marca mais conhecida de leite de soja, para além de outras bebibas, desde água a sumos de pacote, um exemplo de sucesso. Eu próprio desconfio de qualquer leite que não saia das tetas de um animal, e o leite se soja tem uma côr e consistência que ficam longe das minhas exigências. Mesmo o leite de cabra e ovelha deixo para a feitura de alguns queijos, deliciosos sem dúvida, mas de origem suspeita. Sendo que todos os mamíferos produzem leite, existe leite de vaca, cabra, camelo, burra, rata, cadela, etc., é só usar a imaginação, Para mim o de vaca chega e sobra, e além do leite materno, o tal que se apresenta naquela embalagem mais atraente, nunca bebi qualquer outro.
Existe um sem número de marcas de leite nos supermercados do território, e devido ao escândalo do leite contaminado com melamina na China continental há alguns anos, as estrangeiras são as mais requisitadas. Assim o leite originário da Austrália e da Nova Zelândia é o mais vendido. Além da Paul’s e da Anlene, existem ainda a Dairy Farm, a Anchor, a Dutch Lady e outras. Para mim sabem todas a plástico; o leite que se bebe cá em casa é o lusitano Mimosa, que ainda por cima se pode adquirir a preços mais competitivos: em muitos supermercados pode-se adquirir por menos de dez patacas o litro. Não é uma questão de patriotismo, mas de confiança. Prefiro as vacas da fábrica de Oliveira de Azeméis às suas primas distantes e anónimas dos pastos da Oceânia.
A Mimosa é um exemplo de empresa portuguesa que sabe investir no exterior. Além do leite temos iogurtes, manteiga e outros produtos derivados do leite que sem garantir uma qualidade abosulta (o que é impossível) deixam-nos pelo menos de consciência tranquila. E que qualidade tem o nosso leite. Para lá da Mimosa temos a Vigor, cujos famosos “quartos” em garrafas de vidro só encontram paralelo no leite fresco da Dairy Farm, a Gresso, e a excelente UCAL (União Cooperativa dos Armazenadores de Leite), certamente a melhor marca portuguesa e uma das melhores do mundo. Ainda sou do tempo em que se esperava a “leiteira”, uma vendedora ambulante que trazia leite fresco numa espécie de arca frigorífica móvel, e que cantava pregões pelos bairros das pequenas cidades atraíndo os seus residentes que compravam sacos de plástico normalizados de néctar branco, recentemente produzido pelas quintas das vizinhanças.
Além de se puder beber na sua forma mais pura, o leite é ainda um componente das mais deliciosas sobremesas e doces: pudins, mousses, bolos, bolachas, gelados, panquecas e tudo mais. Desconfio das mousses e pudins instantâneos, a que basta juntar água, garantido que já contêm na sua composição leite...em pó. Aí está outra vez o pó a estragar a festa. O creme e as natas desafiam a nossa imaginação, e quem não gosta de morangos com "chantilly", o nome que os franceses deram às natas batidas com açucar? Mesmo na restante culinária o leite pode desempenhar um papel importante, tornando a omeleta mais fofa, o empadão mais alto, e outra vez as natas, que casam com o bacalhau, e que se tornam essenciais no elaborado strogonoff ou nos mais simples bifinhos com natas.
Seja qual a forma como se bebe o leite, puro ou misturado, ou através dos seus derivados, este é um alimento indispensável para os mais jovens e não menos importante para os adultos. É um bem de primeira necessidade, e não tem piada nenhuma que se procure o lucro fácil à custa dele. O leite é um bem que deve estar ao acesso de ricos e pobres, pois é a garantia de uma nutrição equilibrada e uma vida saudável; é a forma mais básica de igualdade. Lembre-se disso da próxima vez que beber um copo de sensaborão leite branco.
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