Macau assiste hoje, primeiro dia do ano, a mais um capítulo no combate ao tabagismo. A partir das doze badaladas da noite passada é proibido fumar nos casinos do território, e alguns já se adaptaram a esta novidade, criando salas próprias para fumadores. A sensação é de déjà-vu, pois há exactamente um ano passou a ser proibido fumar em muitos locais públicos, foram estipuladas coimas para os prevaricadores, e o imposto sobre o tabaco disparou, levando a que um maço de cigarros das marcas mais vendidas passasse a custar quase o dobro. O Governo mostrou que estava mesmo a levar isto a sério, e assim Macau imitou outros países e regiões vizinhas, e deixou de ser um “paraíso” para os fumadores. Outra novidade a partir de hoje é a obrigatoriedade de incluir nos maços de cigarro imagens dos efeitos nocivos do tabagismo, além dos já existentes avisos que lembram ao fumador que este hábito é prejudicial à sua saúde e à saúde de outros (ou “à saúde da outra”, como já lemos por aí). Sim senhor, parece que por aqui se anda a trabalhar bem neste departamento.
Foi uma autêntica revolução, o que aconteceu neste ano. Antigamente era permitido fumar praticamente em toda a parte, se bem que o bom senso ainda chegava para que não se fizesse em alguns locais como hospitais, transportes públicos, recintos desportivos fechados, zonas de atendimento em repartições publics e algumas escolas. Não que fosse tecnicamente proibido, mas era firmemente desencorajado e censurável. Agora quem quiser dar umas passas em alguns sítios onde antigamente era permitido e mais ou menos tolerado, arrisca-se a ser multado em 600 patacas. A lei abrange restaurantes, jardins, pontes aéreas, centros comerciais, piscinas ao ar livre e até na praia, uma especificidade algo surrealista. Agora são os casinos a livrarem-se do fumo do tabaco, e a Direcção dos Serviços de Saúde promete uma fiscalização intensiva, que passa mesmo pela análise da qualidade do ar nas salas de jogo.
A decisão de proibir o tabagismo nos casinos não foi fácil, e ainda existem muitas reservas. Há um ano a lei abriu uma excepção para casinos e bares, onde ainda seria permitido puxar do cigarrinho. Os trabalhadores destes espaços onde vigorava esta excepção sentiram-se excluídos; se o fumo passivo é prejudicial à saúde de quem trabalha nos restaurantes e outros espaços comerciais, porque seriam os trabalhadores dos casinos diferentes? Não estão dotados de qualquer imunidade às doenças provocadas pelo fumo, e a sua saúde vale tanto como a de um empregado de mesa ou de outro cidadão qualquer. Agora que já podem respirar melhor, tenho curiosidade em saber quem vai trabalhar nas salas de fumo nos casinos. Trabalhadores que sejam também eles fumadores? Vai ser atribuído algum subsídio que compense a inalação dos cancerígenos do tabaco? Podem recusar-se a trabalhar nestes locais? Como é?
A principal preocupação nem passa pela saúde dos trabalhadores da indústria do jogo, mas pela saúde da economia local, que dessa indústria depende, como toda a gente sabe. Os casinos que ainda não têm salas de fumo arriscam-se a ficar prejudicados, pelo menos no início. O problema é que nas salas VIP, onde se regista o volume de apostas que faz toda a diferença nestas contas, vai também passar a ser proibido fumar. Um apostador que jogue de uma assentada um milhão em fichas e ao mesmo tempo acenda um cigarro, é multado em 600 patacas. O paradoxo aqui é que enquanto o fumo desse cigarro é proibido por fazer mal à saúde, perder uma pequena fortuna numa mesa de jogo é encorajado. Chega a ser até engraçado; o apostador não pode fumar com o pretexto de que isto é prejudicial para si e para os que o rodeiam, mas ninguém o aconselha a pensar duas vezes antes de se arriscar a perder milhões de patacas em poucos minutos. É até bom que o faça, pois está ali para isso. A partir de agora é possível sair do casino falido, arruinado ou endividado, mas com a vantagem de fazê-lo com os pulmões limpinhos. É um dilema moral interessante.
Não sei como vão os casinos descalçar esta bota anti-tabágica, mas se calhar não vai ser tão mau como alguns auguram. Há quem defenda que um jogador que seja multado por fumar no casino “não regressa depois a Macau”, mas se for mesmo jogador, duvido que consiga encontrar algum casino noutro país onde lhe seja permitido fumar à vontade. Macau era provavelmente o último resistente a esta tendência mundial de obliterar o tabagismo. Duvido que em Monte Carlo ou em Las Vegas, onde mandam os higienistas americanos, existam cinzeiros ao lado das slot-machines ou nas mesas do Bacará. E mesmo na Ásia o mercado de jogadores mais apetecíveis chega da China continental, onde como se sabe não é fácil obter um visto para se sair do país. Com ou sem fumo, a afluência dos jogadores aos casinos de Macau continuará sempre a depender da vontade da China.
Onde há salas de fumo, não existirão motivos de preocupação, mas desconfio que a maioria dos casinos que oferecem esta opção vão ter mais salas para fumadores do que salas “smoke-free”. Os jogadores não são normalmente pessoas que se preocupem muito com a saúde, e os casinos não são frequentados por atletas, e muito menos por crianças. Uma mulher grávida que frequente um casino não estará a ser muito consciente (a não ser que trabalhe lá, aí não tem outra escolha), e mesmo muitas das pessoas de idade avançada que passam dias inteiros em frente às slots são elas próprias fumadoras na sua maioria. Atendendo a que a maioria dos grandes apostadores são do continente, como já referi, e a China é de longe o maior consumidor de tabaco do mundo, e um dos poucos em que esse consumo está em curva ascendente, então esta medida é difícil de entender.
O que é bem possível que aconteça no limite é que alguns apostadores VIP levem consigo alguns milhares de patacas trocados para pagar as multas e poder continuar a jogar e fumar em paz. Pode-se mesmo dizer que fumar é como que um acompanhamento dessa excitação que nunca vou perceber que é estar sentado numa mesa a desbaratar capital em jogos de fortuna e azar – mais azar que fortuna, normalmente. Para estes jogadores fumar é uma distração que ajuda a lidar com a tensão. Casinos e cigarros andam praticamente de mãos dadas. Era até agradável observar em alguns filmes aquelas meninas sexy que bamboleavam pelo casino a vender cigarros numa caixa pendurada ao pescoço. Faz parte do “elan”. Vai ser uma tarefa complicada para quem fica encarregado da fiscalização. Quem está no casino concentrado nas apostas não vai receber com agrado as advertências da malta que está ali a fazer respeitar a lei. Penso que esta situação vai levar a atritos de vária ordem.
Sou a favor de ambientes livres de tabaco, e que cada um tem o direito de respirar um ar limpo, mas também acho que devia existir alguma flexibilidade. Não me agradam fundamentalismos de ordem nenhuma, especialmente se forem contra a liberdade de terceiros, mesmo que seja a liberdade de morrer lentamente. Os fumadores estão fartos de saber que estão a prejudicar a sua saúde, e não precisam de fotografias de pés gangrenados, bocas cancerosas ou comatosos ligados a um ventilador. Mesmo sabendo isto optam por fumar, e se o tabaco é ainda um produto legal, não estão a cometer nenhum crime, e não podem ser tratados como criminosos. Se calhar sabem também que os não-fumadores sÃo também simples mortais, e por isso preferem alcatroar os pulmões enquanto podem, e como não é o mesmo que tomar cianeto, fumar um cigarro não é a diferença entre a vida e a morte. Fumar num casino, num bar ou numa discoteca pode ser prejudicial à saúde de quem não fuma, mas quem vai a um destes sítios a pensar na saúde? É lógico e correcto que não se fumem em hospitais, ginásios ou termas, onde se trata mesmo da saúde e do bem estar, ou locais frequentados por todos, como escolas, centros comerciais ou serviços públicos. Mas bares e discotecas?
Sou a favor que não se fume em restaurantes, pois estes são locais destinados a comer, e não a fumar. Quem quiser fumar depois da refeição pode ir fazê-lo na rua, como já acontece, e bem. Já não posso concordar que não se possa fumar ao ar livre, pois se o problema é a qualidade do ar, este depende de muitos factores além do fumo dos cigarros, e no caso particular de Macau o ar que se respira está muito longe de ser puro. Quem não quer ser incomodado pelo fumo dos outros em parques, na praia ou outros locais ao ar livre, ninguém o obriga. Vá respirar para outro sítio. O que não faz mesmo sentido é que em bares e discotecas, onde se consomem por vezes doses copiosas de álcool, exista a preocupação com o fumo passivo por “motivos de saúde“. Se um dia o combate ao alcoolismo, aos malefícios da bebida e às vidas que se perdem por causa da condução sob os seus efeitos se radicalizar da mesma forma que o combate ao tabagismo, os bares e os pubs só poderão servir água mineral, sumos naturais e leitinho. Não queremos viver num mundo assim, pois não?
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