quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Mao vive


A China assinalou há uma semana, no passado dia 26 mais um aniversário do nascimento de Mao Zedong, o fundador da República Popular, falecido em 1976, com pompa e circunstância. Tenho um amigo que me perguntou porque é que nunca falei de Mao no blogue, qual é a minha opinião sobre ele, e se não o faço por “medo” de represálias. Olhe meu caro, aqui estamos, e como diz o outro, “o medo é uma cena que a mim não assiste”, e ter uma opinião pessoal ainda não é proibido, que se saiba. Julgo que nem se insere naquele crime de secessão ou de traição à pátria, até porque esta não é a minha pátria. Quando falo da China faço-o sempre como um mero observador.

Pode parecer paradoxal que se comemore Mao passados 36 anos da sua morte, e depois de todas as transformações pelas quais a China passou nas últimas três décadas. Bandeiras vermelhas, cânticos patrióticos e pregões revolucionários num país que hoje é mais capitalista que os países capitalistas pode destoar, mas a verdade é que o fervor patriótico e a fé no socialismo estão bem e recomendam-se no país do meio. O povo chinês aplaude os espectáculos de teatro e ópera de temática revolucionária, e apenas os de Macau e Hong Kong – onde mesmo assim há adeptos – torcem o nariz a estas demonstrações de “amor à pátria”.

Os meus amigos e colegas chineses dizem que “não se deve falar mal de Mao”, porque na China é considerado “um santo”. Não sei se dizem isto como forma de auto-censura, ou se realmente acham que o Grande Timoneiro é uma personagem imaculada, mas duvido que seja por esta última razão. Qualquer pessoa com dois dedos de testa sabe que Mao não era perfeito. Muito longe disso. O que Mao fez de verdadeiramente épico foi unificar a China. Um feito espantoso, como um único homem e a sua ideologia conseguiram unir um país que durante milhares de anos foi uma autêntica manta de retalhos. Se o fez a bem ou a mal, isso pouco importa, mas a verdade é que chegou lá, e em 1949 o grande dragão asiático estava finalmente sob uma única bandeira e Governo. Mesmo os 27 anos de maoismo que deixaram a China fechada do mundo é uma questão passível de interpretações diversas. A olho nu isto pode parecer um erro, mas uma reflexão mais cuidada pode dar a entender que se tratou de um mal necessário. Quando se colam os cacos de um gigantesco vaso é preciso deixá-lo secar muito tempo antes que se possa voltar a segurar nele. Quem sabe se a unidade do país dependia mesmo da “limpeza” que Mao levou a cabo?

Agora o que correu mal. Aos olhos do Ocidente, algumas das políticas desastrosas de Mao que levaram à morte de mais de 50 milhões de chineses colocam-no ao nível de um facínora talvez apenas ultrapassado por Stalin. Mao é apontado em muitos círculos como um prova cabal do falhanço do comunismo, e quem se diz “maoista” é normalmente olhado com uma sobrancelha levantada. O seu maior erro terá sido o apego ao poder, que exerceu de forma totalitária até à sua morte. A sua critica da burguesia, da religião e da monarquia cai em saco roto quando se imita o vício da perpetuação do poder. Foi preciso chegar Deng Xiaoping para impôr limites ao poder, que é quase como uma droga que vicia. Actualmente nenhum dirigente chinês poderá exercer esse cargo por mais de 10 anos. O erro de Mao foi imitado por alguns seus contemporâneos e mesmo outros que lhe seguiram noutras latitudes: lideraram uma revolução que “libertou” o país, e depois não tiveram a humildade de entregar o poder a quem o pudesse exercer com competência.

Não é preciso recordar aqui os efeitos desastrosos das políticas de Mao na China, nomeadamente o Grande Passo em Frente, e mais tarde a Revolução Cultural, o maior de todos os equívocos. Existem videos no YouTube e uma filmografia significativa (mesmo na China) que ilustram os vários aspectos da desgovernação de Mao e os efeitos perversos das suas políticas. Se a China chegou onde está nos dias de hoje, foi graças à imposição do tal socialismo de mercado, que levou tudo à sua frente. A Revolução Cultural deixou a China mergulhada num atraso que poucos acreditariam que seria ultrapassado rapidamente. Escuto muitas vezes opiniões no sentido de atribuir as culpas da Revolução Cultural à companheira de Mao, Jiang Cheng, a sua quarta mulher. É curioso como muitas vezes se desculpam alguns ditadores transferindo o ónus da culpa para a mulher. Muitos filipinos consideram que Ferdinando Marcos “não era mau”, mas Imelda era uma víbora, e alguns romenos até pensam que Nicolae Ceausescu era “um tipo porreiro”, e a sua mulher Elena era “uma cabra”.

A própria vida de Mao é fascinante, e não entendo como ainda não se lembraram de realizar um filme biópico que lhe faça justiça. Quem quiser saber da sua história até à fundação da RPC, quando tinha já 56 anos, encontra um homem firme, decidido, com todas as características heróicas que lhe granjearam uma legião de seguidores, mesmo no Ocidente. Era um revolucionário que queria o bem, indepedentemente dos erros que se seguiram, e que viriam a manchar o seu nome. Alguns detalhes da sua vida pessoal, que viriam a ser revelados pelo seu médico particular Li Zhuishi no livro “A vida privada do presidente Mao”, são aterradores. Fazendo fé nesses relatos, estamos aqui a falar de um louco.
Damos-lhe o benefíco da dúvida. A roupa suja lava-se em casa.

Um dos aspectos que o redime, e o qual até podemos dar graças, foi a sua atitude passiva quanto às regiões chinesas ocupadas por potências estrangeiras. Apesar da insistência do seu "compatriota" Stalin numa reunião entre ambos em 1953, Mao resistiu à tomada pela força de Macau, apesar do "pai dos povos" soviete ter apelado à expulsão "dos malditos imperialistas portugueses". Em retrospectiva, ainda bem para nós que o Grande Timoneiro primou pela sensatez, caso contrário seriamos hoje apenas uma extensão de Zhuhai. O mesmo se pode dizer sobre a questão de Taiwan, onde o uso da força poderia ter tido consequências imprevisiveis durante os tempos mais quentes da Guerra Fria. Mesmo os excessos da Revolução Cultural, apesar dos (desinformados) adeptos um pouco por todo o mundo, não chegou a transbordar dos limites da China - e ainda bem. Apesar dos excessos, Mao tinha consciência de alguns limites.

Um aspecto fascinante do processo de consolidação do poder que encetou foi o culto da personalidade. Os “posters” e toda essa memorabilia são um deleite para qualquer colecionador que se preze. São objectos pitorescos com um valor artístico muito especial, muito “kitsch”. Numa das minhas viagens à China comprei um relógio de bolso de latão banhado em bronze com a efígie de Mao, que me custou a módica quantia de 100 patacas. Mesmo nos dias de hoje a sua imagem está presente na face de todas as denominações do yuan, a moeda chinesa. Outra contribuição de Mao foi o seu pensamento. Mao era também um filósofo, um calígrafo e um pensador, e muitas das frases que cunhou são de puro génio e ainda bem actuais, por muito que se discorde da mensagem ou do seu carácter ideológico. “Devemos apoiar tudo o que o nosso inimigo combate, e combater tudo o que o nosso inimigo apoia”, “O poder político cresce no cano de uma arma”, “A guerra é política com derramamento de sangue, e a política é a guerra sem derramamento de sangue”, e a minha favorita, “Uma revolução não é o convite para um jantar, a composição de uma obra literária, a pintura de um quadro ou a confecção de um bordado. Não pode ser assim tão refinada, calma e delicada, tão branda, tão afável e cortês, comedida e generosa. A revolução é um insurreição, é um acto de violência pelo qual uma classe derruba a outra”. Brilhante!

A China pós-Mao soube fazer uso da sua imagem, e ainda hoje o seu retrato se encontra no centro da Praça Tiananmen, em Pequim, onde o seu corpo repousa também embalsamado num mausoléu visitado todos os anos por milhares de turistas. Será sobretudo uma inspiração, para que o povo chinês não esqueça o homem que o libertou de séculos de guerra, feudalismo e ocupação estrangeira. Quanto ao resto, a actual geração de dirigentes encarrega-se de levar a China na sua direcção. Só não sei se Mao ia concordar com ela, se fosse vivo. Ah mas ele está “vivo” pois, e até se celebra o seu aniversário e tudo. Viva Mao, o pensador.

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