1) Macau esteve hoje debaixo de um sol escaldante, e mesmo não tendo a confirmação oficial do facto, suspeito que terá sido o dia mais quente do ano. Foi um martírio circular pela rua durante as horas de maior calor, com o astro-rei a impôr a sua supremacia sobre a selva de cimento, fechada pelo cadeado dos edifícios que não permite a circulação do ar, e onde esbarra a mais leve brisa. Como se não bastasse andar pelo centro aos habituais “esses” a que obriga o mar de gente que encontramos pela frente, junta-se ao incómodo uma savana de guarda-chuvas, com que se protegem os mais sensíveis ao raios ultra-violeta. Quer turistas, quer residentes, usam o guarda-chuva de modo a improvisar uma sombra que resguarde a pele e a sua alva tez. Bem pensado, sim senhor, nada contra, mas agradecia que tivessem presente o conceito que este planeta é habitado por outras pessoas além deles? E que essas “outras pessoas” querem tratar da vidinha e não estão para se juntar à procissão dos guarda-chuvas que ocupam metade da via pública e marcham a passo de caracol? Pode ser que muita gente esteja de férias, mas os acessos da cidade por onde passam diariamente milhares de pessoas não são o Clube Med. Pode ser uma zona turística, claro, mas não é a praia. É desagradável ter que afastar da frente os chapéus com as mãos, comportando-me como um alarve, mas não fosse a extrema necessidade de cumprir horários e deslocar-me de um ponto ao outro e não cometeria tal deselegância. Não me levam a mal, isto nem é nada de pessoal. Pudesse eu ficar em casa debaixo do fresquinho artificial do ar-condicionado, e estava-me nas tintas para quem anda na rua a fritar ao calor. Por mim podiam até realizar uma parada de guarda-chuvas, milhares deles, de todas as cores, formas e feitios. Só que,
helas, a vida obriga-me a ganhar o pão com o suor do meu rosto, por muito que isso me custe. E nunca como hoje isso do suor fez tanto sentido.
2) Quem não precisa de andar ao sol mas mesmo assim anda de cabeça quente é a deputada Angela Leong. Uma das “patroas” da SJM está furiosa com um artigo publicado na semana passada pelo Hoje Macau, que sugere a sua interferência no sentido de voto dos trabalhadores recenseados a seu cargo. Uma funcionária do casino Oceanus que preferiu não se identificar afirma que Angela Leong terá pedido a alguns subordinados seus que se inscrevam nos cadernos eleitorais e votem nela, em troca de algumas contrapartidas. A deputada considera mesmo processar o jornal por difamação, e desafia a que se apresentem provas desta sua alegada conduta. Pois, pois, provas. Registos em audio e video, som em “stereo-surround” e imagens em alta definição, denúncias por escrito de colaboradores arrependidos, confissões assinadas pela própria suspeita. Provas, estão a ver? O director do Hoje, Carlos Morais José, já reagiu, interrogando-se porque não são investigadas estas suspeitas pela comissão eleitoral, e assim ficavam esclarecidas as dúvidas? Ora, isto nem parece seu, kemosabe. Os rumores de compra de votos e outros expedientes nada condizentes com os frequentes apelos às eleições justas e limpas recaem sobretudo sobre candidatos ricos, poderosos e influentes, desde empresários e figuras públicas a indivíduos conotados com o crime organizado. Fossem uns badamecos ou pindéricos quaisquer ou os maluquinhos dos activistas pró-democratas e já o CCAC lhe tinha deitado as patas em cima. Como não são, desculpam-se com a falta de provas ou a ambiguidade de alguns actos, como o transporte de eleitores até às urnas, e assim se vai atirando areia para os olhos com a confusão entre corrupção eleitoral e meras acções de campanha – mesmo que a campanha propriamente ainda esteja a quase um mês do arranque, estando portanto desautorizadas todas as actividades nesse sentido. Com o presente estado de coisas, o melhor é assobiar para o lado, e continuar a apelar à transparência. Pode ser que alguém acredite.
3) Ainda no Hoje Macau, que na sua edição de hoje deu conta do caso de uma trabalhadora não-residente grávida a quem foi cobrada uma avultada quantia pela realização de testes de rotina no hospital público. Não sendo residente, a mulher não beneficia de subsídios governamentais, e por isso é-lhe cobrada a totalidade da despesa em cuidados de saúde, mesmo no serviço público. Segundo a reportagem do Hoje, a quantia excedeu mesmo o preço tabelado, cifrando-se em mais de sete mil patacas, em vez dos regulamentares quatro mil e pouco. Isto leva a que muitos não-residentes recorram a consultórios privados, normalmente menos dispendiosos, evitando assim a discriminação dos serviços de saúde. Neste caso particular, a despesa é incomportável para o vencimento auferido pela trabalhadora em questão, que não teve outra opção senão adiar os exames pré-natal até encontrar outra alternativa mais de acordo com as possibilidades. De facto torna-se complicado para um trabalhador não-residente ambicionar aa comodidades tão simples como a saúde e a educação, pois este estatuto impede-os de usufruir das mesmas vantagens dos residentes permanentes e temporários. Numa interpretação mais fria e rigorosa, os portadores de “blue-card” estão obrigados a trabalhar para a sua entidade empregadora, responsável por quase todas as suas parcas regalias. Constituir família ou educar os filhos não fazia parte da intenção inicial da importação de mão-de-obra estrangeira. Apesar de todas estas condicionantes, é preciso recordar que não estamos aqui a falar de um animal doméstico que temos em casa, e que se leva ao veterinário para ser esterilizado, ou um electrodoméstico que adquirimos para nos servir e que fica arrumado a um canto quando não precisamos dele. São pessoas que pensam, que sentem e que socializam, ou pensavam que as empregadas domésticas não engravidam, e que os bebés nos seus países de origem nascem das árvores? Negar o acesso à saúde a quem necessita, neste caso uma mulher grávida, apenas com base no seu estatuto laboral, é desumano. Este excesso de zelo não visa proteger os residentes de pleno direito, que continuam a gozar das mesmas regalias, e fica mal num território onde dinheiro é coisa que não falta. Quanto à discrepância entre quantia pedida à gestante pelos exames médicos e o preço real, cabe apenas ao hospital público esclarecer.
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