quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O que queres ser quando fores grande?


No Domingo, enquanto batalhava contra a lentidão da ligação à rede, ia espreitando para a programação da RTPi, uma vez que a TDM passava a repetição do jogo do Sporting, e vi alguns momentos da Gala dos Pequenos Cantores da Figueira da Foz. O certame que os leitores da minha geração recordam da infância, nomeadamente o enfadonho “Eu vi um sapo”, da então desdentada Maria Armanda, regressou após alguns anos de interregno, e não percebo muito bem o que levou a suspendê-lo. O apresentador foi durante muitos anos o inconfundível Sansão Coelho, uma espécie de Toto Cutugno cruzado com Barry Manilow, e agora a boa notícia: ele está vivo! Mais velho, claro, mas está vivo e fazia parte do júri. A apresentadora da Gala na versão terceiro milénio é Sílvia Alberto, aquela moça cheia de açucar que transmite a mesma energia tanto a um desfile carnavalesco como a um funeral de Estado. É só alegria!

A Gala é assim como uma espécie de Festival da Canção júnior, e os concorrentes são jovens entre os cinco e dez anos à procura de um lugar ao sol no mundo do espectáculo. Tinhamos alguns concorrentes exóticos, como uma menina romena que cantou em romeno, e dois pequenos chineses que cantaram em Mandarim – sinais dos tempos. Desconheço quem foi o vencedor, até porque não assisti até ao fim, mas isso é que menos importa. Já que falámos de fama e de um lugar ao sol, havia uma concorrente que me chamou a atenção. Uma menina de cabelos encaracolados em cacho, que não teria mais que 8 anos, e que disse que quando fosse crescida queria ser “cantora e modelo”. A sério? Dando-lhe o respctivo desconto devido à terna idade, será que é isto que ela quer mesmo? E os pais ainda a encorajam? Se sim, que raio de pais são estes?

Quando somos crianças o mundo é uma bola nas nossas mãos, citando o Manuel Freire e a sua “Pedra Filosofal”. Quando temos 5, 7, 10 ou até 13 anos podemos ser aquilo que quisermos, e depois chega a puberdade e descobrimos que não queremos ser nada. Quando eu tinha oito ou nove mudava de “profissão” praticamente todos os meses. Queria ser detective, inspirado nos livros de banda desenhada, depois quis ser tratador dos leões no Jardim Zoologico, e cheguei mesmo a considerar fascinante a profissão daquele gajo que enchia o tanque no posto da gasolina. Depois não quis ser nada. Com toda a certeza que nunca disse durante a minha infância que queria ser funcionário público, para poder ter um tachinho fixo sem um chefe sacana a chatear e a ameaçar-me com o despedimento. Mas aconteceu, pronto. Quem diria.

Essa coisa de perguntar “O que queres ser quando fores grande” é uma treta que os adultos inventaram para meter conversa com as crianças, desfazados que estão da sua realidade, e por isso optando por uma pergunta parva para tentar encontrar um ponto de comunicação. Tivesse eu a mesma veia sarcástica que tenho agora, e respondia “olha…se for mesmo muito grande quero ir jogar na NBA”. Mas talvez com medo de serem abusados verbalmente ou fisicamente pelos matulões dos adultos, os putos respondem, e normalmente dão uma resposta sempre muito “politicamente correcta”. Ninguém diz coisas como “bilionário”,“freira”ou “empresário da noite”. As respostas são sempre “light”, como aquelas natas que não engordam.

Os rapazes mais saudáveis e desportistas querem ser sempre algum tipo de atleta, normalmente um futebolista. Os pais acham graça, desde que eles não estejam a falar a sério. Os cotas têm a plena consciência que a grande maioria dos aspirantes a futebolista de topo tornam-se nuns pelintras depois dos 30 anos. Os que respondem “médico”, “arquitecto” ou outra profissão liberal demonstram alguma maturidade, mas preocupam os pais, que temem que o filho não tenha jeito para o trabalho físico, e nunca se sabe se a carreira de servente na construção civil não possa surgir no horizonte para lhe garantir o sustento. Sempre é melhor que nada. Se o miúdo responde que quer ser “mecânico” ou “carpinteiro”, dizem-lhe logo “não sejas parvo, pá!”, e se dizem “padre”, “modista” ou “decorador de interiores”, cai o Carmo e a Trindade. Nessa noite vão dormir com a cara inchada de tabefes.

As meninas querem ser sempre alguma paneleirice que os adultos acham graça, do tipo “quero ser modelo”, ou “actriz”, ou “parteira” (quando ainda existiam parteiras). Ainda lhes é permitido responder qualquer coisa que requeira alguma sensibilidade, como “médica” ou “veterinária”, mas se a miúda responde “advogada”, “engenheira” ou “arquitecta”, os adultos tiram o sorriso idiota da cara e pensam preocupados: “coitadinha, tão pequenina e já é lésbica”. Ninguém ter a coragem de dizer com franqueza a uma miúda de sete ou oito anos que ser actriz, modelo ou cantora pode implicar sacrifícios para se chegar ao topo, como ter que dormir com gajos asquerosos, ser obrigada a tomar drogas ou ficar anoréxica. É giro ouvir aquilo da boca delas, mesmo que não seja possível. É da idade, pronto.

É claro que a melhor profissão é aquela para que temos vocação, e se isso não for possível, que saia a terminação. Os sonhos são uma coisa perigosa, e caso não se possua uma apetência ou talento especiais para o efeito ou toneladas de cunhas, nada feito. Para os pais já é óptimo que seja uma profissão digna que lhes permita pagar as contas e não lhes andem sempre a pedir massa emprestada, em muitos casos para remendar as asneiras que eles, os pais, “nunca fariam no seu lugar”. E que pensam os outros? Vai alguém dizer mais tarde algo como “Mas olha lá, o teu filho é estivador? Não era ele queria ser dentista? “. Nada disso, ninguém quer saber. Isso de “O que queres ser quando for grande” não passa de conversa de adultos. Conversa de chacha.

2 comentários:

Anónimo disse...

Olhe, eu sou arquitecta e não sou lésbica!
A minha irmã é advogada, e também não é lésbica!
Não sei se tem algum tipo de complexo com as partes intimas de alguns profissionais, mas deveria ter mais consideração pelas pessoas e com aquilo que escreve, porque nem sempre se deve pensar tão "alto" e há pensamentos ou opiniões que devem dormir consigo, valeu?
Gosto dos seus artigos, mas às vezes excede-se...

Leocardo disse...

Agradeça a sua preferência, mas gostava que não fizesse segundas ou terceiras leituras daquilo que escrevo. Não digo em parte nenhuma do texto que as arquitectas são lésbicas ou que uma menina que queira ser arquitecta é potencial lésbica. Referia-me apenas às expectativas que os adultos têm quando perguntam a uma criança o que quer ser, e de como de umamenina de seis ou sete anos esperam que ela diga uma profissão daquelas marcadamente femininas, como bailarina, actriz ou professora. Gostava de deixar claro desde já que não tenho dúvidas que uma mulher pode desempenhar tão bem ou melhor que um homem as profissões normalmente "masculinas", seja mecânica de automóveis, astronauta ou presidente da República. Mas ainda bem que isto aconteceu, pois serve a quem mais tirar conclusões precipitadas do artigo ;)

Cumprimentos