Devido a um problema com o correio electrónico,
o artigo desta semana do Hoje Macau foi excepcionalmente publicado na sexta-feira. Quem ainda não leu, pode fazê-lo aqui no blogue, como habitualmente.
Quem caminha na direcção do Largo do Senado através da Rua Pedro Nolasco da Silva, vulgo “Mariazinhas”, encontra à sua esquerda a Rua da Palha, arruamento com um nome curioso. Quando pensamos em “palha” lembramo-nos da forragem que serve de alimento a certos animais de quinta e bestas de carga, como o boi ou o burro. A palavra lembra ainda as cartas de jogar sem valor no jogo da bisca, e a zona da Reserva Natural do Estuário do Tejo é conhecida por “Mar da Palha”. Desta Rua da Palha não dá para ver o mar, vale mais que os duques da bisca mas não faltam as senas tristes (ou cenas), e ultimamente é possível encontrar por lá um número considerável de “bestas”.
Onde a Rua da Palha termina, começa a Rua de S. Paulo, e no fim desta encontramos as ruínas da igreja da Madre de Deus, mais conhecidas por “Ruínas de S. Paulo”, ex-líbris de Macau, visitado diariamente por milhares de turistas de todo o mundo. Ponto de passagem incontornável quem se desloca do centro da cidade até às Ruínas de S. Paulo e vice-versa, na Rua da Palha existem sobretudo espaços comerciais, onde encontramos um pouco de tudo: lojas de roupa de marca, sapatos, pechisbeque, livrarias, as famosas “Portuguese egg tarts”, a versão local do pastel de nata, as lojas de carne assada e bolinhos de amêndoa típicos de Macau, muito requisitadas pelos visitantes, e até farmácias, muito úteis no caso das guloseimas caírem mal nos estômagos menos habituados. E à volta de tudo isto anda gente, muita gente.
É praticamente impossível atravessar a Rua da Palha durante o dia sem precisar de fintar centenas de turistas, que a passo de caracol vão contemplando o centro histórico, alienados do restante que se passa à sua volta. Alguns fazem uma pausa para consultar o mapa e saber a quantas andam, e para o efeito não podiam escolher um sítio melhor: o meio da rua. Outros olham para cima enquanto andam, sem que se perceba bem para o quê. Se calhar estão a ver se chove. E por falar em chuva, na eventualidade dela cair, acrescenta-se ao calvário de quem por ali passa precisar de desbravar uma floresta de guarda-chuvas. A forma anárquica com que os visitantes circulam pelo centro histórico leva-me a desconfiar que os guias sobre Macau omitiram o facto de que aqui vivem pessoas, e nem todas trabalham nos casinos ou no sector do turismo, têm horários a cumprir e querem ir à sua vida.
Uma das vantagens de viver em Macau, e que nunca me canso de referir, é a possibilidade de poder fazer o trajecto entre casa e emprego sem depender de transporte, bastando para tal viver a não mais de quinze ou vinte minutos a pé do local de trabalho. Nestes vinte anos desde que aqui cheguei consegui cumprir com sucesso esse desígnio, mas no actual estado de coisas o caminho casa-trabalho-casa deixou de ser um simples passeio. Ainda bem que temos tanta gente de fora a vir até cá gastar o seu dinheirinho, mas as ruas não têm capacidade e amplitude para tanto. Cabemos todos, sim, mas apertados. Mas já que é assim, bem que se podia respeitar e ficar atento quem não tem tempo para andar a ver as montras e às vezes está com pressa.
Quando saio de casa para percorrer o caminho que me separa dos meus compromissos atravesso a belíssima Rua dos Ervanários, o que me levanta sempre o astral, mas é ao chegar à Rua dos Mercadores que o dia começa a azedar. Corto pela subida da Rua das Estalagens, e apanho logo pela frente os vendedores ambulantes de frutas e flores, mais o seu estaminé de baldes, cestos e chapéus de sol montado na via pública. Junto a estes encontra-se um vendedor de massas chinesas muito apreciadas pelos locais ao pequeno-almoço, com a sua carripana de metal, rodeado da sua clientela faminta que por vezes faz de tampão a quem quer ali passar. Um sorriso e um “com licença, fáxavôr”, e dão um passinho para o lado sem tirar os olhos da canja, dos “van-tan” ou do pão cozido a vapor, não vá alguém levar aquilo por engano e depois lá vão eles morrer de fome. Quando chove levanta-se um tapume tão baixo que os mais distraídos arriscam-se a bater lá com a testa.
Atravessar a Rua da Palha de manhã não é assim tão mau, com os turistas ainda na caminha ou a desjejuar, mas pela hora de almoço é que são elas. Após os desvios, encontrões, empurrões e pisadelas, a sensação com que se fica ao chegar à Rua das Mariazinhas é a que se acabou de marcar um ensaio num jogo de futebol americano. Um grupo de rapazes turcos abriu há mais ou menos dois anos uma tendinha de gelados mesmo no meio da Rua da Palha, e entretêm habitualmente a freguesia com malabarismos, o que desperta a curiosidade de quem por ali passa. Chega a juntar-se uma multidão que assiste estarrecida ao espectáculo, como se fosse um elaborado número de trapézio, obstruindo por completo o caminho. Peço sempre que se afastem com diplomacia, mas às vezes sai-me um palavrão ou dois. Nem sempre é fácil manter a cabeça fria, especialmente debaixo de um sol escaldante.
Agora a pergunta que se impõe: porque não resolvo o problema optando por outro caminho? Porque este é o mais curto, e porque haveria eu de ficar condicionado na cidade onde vivo? Detesto ter que ser desagradável, empurrar os turistas e dar safanões nos guarda-chuvas, mas se isso fosse um crime, alegava auto-defesa. Quando visito uma cidade da região tento fazer o melhor para não interferir com o dia-a-dia de quem lá vive e trabalha, e só posso esperar o mesmo dos nossos turistas. É complicado resolver o problema, não dá para esticar os passeios ou construir uma passagem aérea que atravesse o centro histórico. Paciência. O meu maior receio é que um dia nos vedem o acesso à Rua da Palha, alegando a mesma razão que o comandante da PSP para impedir o acesso de um grupo de manifestantes à Colina da Penha: “é só para os turistas”.
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