segunda-feira, 19 de agosto de 2013

As ilusões do Euromilhões


“Quando eu ganhar/o Euromilhões/vou tratar os outros/como cagalhões” – é assim que começa o tema “Euromilhões”, dos Corações de Atum, um dos projectos musicais do genial Manuel João Vieira. Apesar da carga humorística presente na rima, existe nela uma grande dose de sinceridade. Para um Zé-ninguém com origens humildes, sem estudos ou qualquer talento que o distinga dos demais, nada como depender da sorte e do acaso para esfregar a sua fralda imunda nas trombas do mundo e gritar bem alto: “Cheguei! Estou aqui!”. Existe um ditado popular um tanto ou quanto alternativo que diz: “Quem não rouba nem herda, nunca sai da merda”. Isso foi antes de aparecer o Euromilhões.

Qualquer pindérico que por mera coincidência tenha um cartão com os números premiados dessa semana passa a ser alguém de um dia para o outro. Os vizinhos que antes o conheciam por “aquele badameco” passam a chamá-lo de “sr. doutor”, mesmo que tenha apenas o secundário incompleto. Alguém que levava as pessoas a mudar de passeio para o evitar passa a ter centenas de amigos, e o maior camafeu que fazia com que as mulheres preferissem ficar de pé no autocarro do que a sentar-se ao seu lado torna-se mais irresistível que o Brad Pitt. De facto não há melhor maneira de impôr o respeito do que uma conta bancária bem recheada. Vencer o Euromilhões é uma operação de cosmética infalível.

Quando era mais novo e vivia ainda em Portugal a moda era o Totoloto. Todas as sextas-feiras cumpria-se o ritual de registar o bilhete, com a esperança de mudar completamente de vida em cinco minutos, o tempo que demorava o sorteio ao final das tardes de Sábado, transmitido em directo pela RTP. Escusado será dizer que era um dos programas com maior audiência. Ninguém apostava no Totoloto por outro motivo que não fosse a secreta esperança de enriquecer sem esforço. Quem jogava no Totobola – cujo primeiro prémio era insignificante comparado com o do Totoloto – ainda se podia escudar no argumento de “tornar os jogos mais interessantes”. No caso do Totoloto tudo dependia de uma tombola e 40 e tal bolas que dela saíam de forma aleatória. Qualquer atrasado mental que conseguisse colocar seis cruzes num quadrado podia tornar-se num milionário.

Quando o prémio não saía, a quantia ficava acumulada com a da semana seguinte, o famoso “jackpot”. Se mesmo assim ninguém tivesse acertado nos 6 números, havia um “duplo jackpot” na semana seguinte. Lembro-me do primeiro “duplo jackpot” do Totoloto, algures em finais dos anos 80, com um apetecível prémio de 300 mil contos (cerca de 1,5 milhões de euros, o que na época era uma pipa de massa). Foi o delírio, e não se falou de outra coisa durante toda a semana. Na televisão entrevistavam-se cidadãos anónimos apanhados ao acaso na rua, e quando lhes perguntavam o que faziam caso lhes saísse o prémio, a resposta era normalmente humilde: “vou comprar uma casinha para os meus filhos”, ou “vou fazer uma viagem com o meu marido”, ou ainda “pagar as dívidas e guardar o que sobra”. Mentiras tão cabeludas que devia existir uma lei que metesse esta gente na prisão, de tanto fingimento que exteriorizam. Quem se apanha com tanto dinheiro nas mãos perde logo a cabeça.

Quem não nasceu já rico ou não conquistou a sua fortuna pelo próprio pulso à custa de muito esforço e sacrifício, tem tendência para não dar valor ao dinheiro. Quem subitamente passa de pelintra a milionário não está dotado dos anticorpos necessários para resistir à picada do ferrão da deusa da fortuna. São inúmeros os casos de milionários instantâneos que esbanjam os milhões que lhe caíram do céu, e acabam ainda mais miseráveis do que no início. Em termos de liquidez ficam mais ou menos na mesma, mas depois de provar o doce veneno da riqueza, passam-se da cabeça. Um caso recente dá conta de um informático de 40 anos que matou a senhoria, uma idosa de 75, depois de ter desbaratado em poucos meses o segundo prémio do Euromilhões, qualquer coisa como 600 mil euros. Afinal quem é a velha para me vir cobrar a renda, quando já tive um Porsche e um iate? Depois ainda vêm justificar a burrice com “depressão”. Sim, eu também ficaria deprimido com tamanha estupidez da minha parte.

Consideremos um cidadão da classe média, com uma idade entre os 30 e os 50 anos, casado e com filhos, a quem sai um prémio de 20 milhões de euros no Euromilhões. Dependendo da solidez da relação conjugal, que em 90% dos casos é uma merda, divorcia-se, e se o regime de bens é outro que não o da separação (100% dos casos), metade do dinheiro vai parar à conta da agora ex-mulher – e ela até lhe agradece a dispensa, e não se importa de ficar com os filhos. Os restantes dez milhões são gastos em luxos desnecessários, como carros de topo de gama, acessórios fúteis e mulheres interesseiras. Isto quando não caem em algum conto do vigário, levado a cabo por algum espertalhão que tenha vindo a ter conhecimento da novidade. Regressa à cepa torta, tenta em vão recuperar a esposa (às vezes na esperança dela não ter cometido os mesmos disparates e ainda tenha um pé-de-meia que dê para viverem desafogados), cai na depressão, em alguns casos na droga, e quase sempre o fim é trágico.

E como se explica este fenómeno? Afinal todos nós pensamos como seria bom poder viver sem pensar como pagar as contas no fim do mês, não precisar de aturar o sacana do patrão e ainda deixar qualquer coisinha de herança para os putos. Uma vez com essa quantia que consideramos suficiente para não precisar mais de trabalhar para o resto da vida, perdemos a cabeça e deitamos o dinheiro borda fora. Permitam-me recorrer a uma frase feita para estabelecer um motivo: “a culpa é da sociedade”. Quem não quer ter modelos desportivos na garagem, uma mansão com piscina e criados para nos abrirem a porta, uma secretária com pernas até ao pescoço, interrompidas apenas por um belo par de marmelos? Já vimos malta deste calibre na televisão, parecem felizes, e a maioria continua rica depois de muitos anos a viver na alta roda.

Mas quanto custa tudo isto, já pensaram bem? Vinte, trinta, cem ou duzentos milhões de euros são valores que nos permitem comprar este mundo e o outro, sem dúvida, mas cada euro que se gasta é menos um euro que nos separa do zero, lá por termos ganho uma vez não significa que estejamos dotados da capacidade de fazer dinheiro . Mas quem foi o desmancha-prazeres que escreveu as regras do jogo? O caminho entre a sarjeta e o palácio devia ser apenas de ida, e nunca de volta. Bem, para quem tiver mais fibra e resista à viagem, pode-se orgulhar de ter um dia tratado os outros “como cagalhões”, antes de voltar também ele a fazer parte do composto orgânico. C’est la vie…

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