sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Putinagem artística


Os Estados Unidos e a Rússia estão novamente de costas voltadas, como nos bons velhos tempos da Guerra Fria. Mas ao contrário do período entre os anos 50 e finais dos anos 80 do século passado, não existe uma ameaça nuclear, e em vez de guerrilha em países do terceiro mundo, temos a diplomacia como arma de arremesso, o que sempre provoca menos derramamento de sangue. Em causa está a recente decisão de Moscovo em atribuír exílio a Edward Snowden pelo período de um ano, depois de semanas na área de trânsito do aeroporto da capital russa. Snowden é procurado pela justice norte-americana por ter revelado informação confidencial a que teve acesso durante o período em que trabalhou na CIA, denunciando a espionagem dos Estados Unidos aos seus aliados. A decisão da Rússia levou a que o presidente norte-americano Barack Obama cancelasse há dias um encontro com o seu homólogo russo Vladimir Putin. Como é do seu timbre, Putin encolheu os ombros e perguntou "o que foi que eu fiz?", como o puto ranhoso que esconde a fisga atrás das costas depois de partir um vidro, e todos o olham com reprovação.

Putin é um personagem por quem nutro uma admiração especial, mesmo que os meus princípios me levem a não gostar dele. O homem de 60 anos que lidera os destinos da Rússia desde 2000, nascido em S. Petersburgo, então Leninegrado, é dotado de um carácter que não sendo do agrado de todos, merece o respeito de quem realmente importa nestas contas: os russos. O problema é que nem todos os russos simpatizam com Putin ou com a direcção que escolheu para o país, e no caso de se tratar de alguém rico ou poderosos, arrisca-se a cair borda fora do grande plano do líder, perdendo a sua fortuna, influência, e por vezes até a liberdade. A atitude de Putin na resolução do caso Snowden é não mais que a previsível, atendendo ao que nos vem habituando desde que se tornou o mais famoso residente do Kremlin.

Durante os tempos da União Soviética, Putin trabalhou para o KGB, onde entrou aos 23 anos, em 1975, depois de terminar uma licenciatura em Direito Internacional na universidade da sua terra-natal. Trabalhou junto do minstério dos negócios estrangeiros, e entre 1985 e 1990 esteve estacionado em Dresden, na RDA, onde colaborou com a controversa polícia secreta, a Stasi. Demitiu-se do KGB em Agosto de 1991, após a tentativa de golpe de estado contra o presidente Mikhail Gorbachov, colocando-se do lado dos reformadores. É cinturão preto em karate, o que leva a desconfiar da sua baixa estatura e aspecto franzino. Todos estes atributos levaram-no a ser apontado como sucessor natural do presidente Boris Ieltsin, a quem tinha servido de primeiro-ministro entre 1999 e 2000.

A tomada de posse foi a 7 de Maio de 2000, e três meses depois dava-se a crise do Kursk, o submarino nuclear que explodiu e naufragou no mar de Barents. A forma com que o novo presidente lidou com a situação foi criticada, recusando-se inicialmente a interromper as férias que gozava na estância balnear de Sochi, no Mar Negro, e rejeitando a ajuda internacional que poderia ter amenizado os efeitos da tragedia. Os russos começavam a ter dúvidas quanto à sua capacidade, e a comunidade internacional apressou-se a considerá-lo mais um pobre diabo de entre os muitos que emergiram das ruínas da URSS. Para um país que estava entregue às oligarquias criadas por Ieltsin numa tentativa desesperada de estimular a economia falida, com as mafias a ditar as regras, uma corrupção endémica e uma inflação galopante, Putin parecia tudo menos um salvador.

Mas depois do baptismo de fogo que foi o Kursk, Putin operou uma revolução silenciosa que devolveria gradualmente a Rússia aos tempos gloriosos, desta vez na perspectiva de uma economia de mercado bem sucedida. Mudou o elenco das oligarquias, rodeando-se de empresários jovens e da sua confiança, chegou a acordo com os salteadores que pilharam o país durante o caos da pós-URSS, fazendo-os regressar com o dinheiro que seria investido entre portas, colocou as mafias na ordem, retirando-a da ribalta da luz do dia, criou uma nova geração de milionários, e devolveu dignidade ao sector público, adaptando-o às novas realidades com a eliminação dos excendentários e o fim de velhos vícios que o vinham tornando um fardo para os contribuintes.

Ao contrário do que sucedeu inicialmente com o Kursk, a forma como Putin viria a lidar com outras crises internas recebeu aclamação interna, apesar dos métodos duvidosos aos olhos da comunidade internacional. A irredutibilidade perante os grupos separatistas do Daguistão e a firmeza em resolver o conflito na Chechénia, decidindo-o pela força, demonstraram a sua persistência em manter a unidade da nação e a recusa em negociar com terroristas. Na política externa deu-se a primeira cisão pós-Guerra Fria com os Estados Unidos. Depois de uma curta relação de amizade com Bill Clinton, Putin travou os intentos de dominação global da administração Bush, respondendo à letra às tentativas de supremacia militar e estratégica de Washington. Manteve os países periféricos do seu lado, restabeleceu laços de cooperação com a China, e abraçou o regime venezuelano de Hugo Chávez.

A juventude russa, orgulhosa da sua herança e do seu longínquo passado imperialista que tornaram o seu país o maior do mundo em termos de território, tinham finalmente encontrado uma referência em Putin. A reeleição em 2004 foi suave, mas a constituição russa permite apenas um número máximo de dois mandatos, e foi aqui que líder da Rússia renascida iniciou o seu plano de perpetuação no poder, e revelou a sua faceta de déspota. As eleições de 2008 foram ganhas por Andryi Medvedev, um dos homens de confiança de Putin, que passaria a primeiro-ministro, mantendo a liderança "de facto" do país. Em 2012, e com os "cartões amarelos limpos", recandita-se e tornar-se novamente presidente, cargo que deverá manter até 2020, depois de nova reeleição em 2016. Actualmente com 60 anos, não colocará de parte a repetição do truque do presidente fantoche que lhe poderá permitir mais dois mandatos, com o ano 2032 no horizonte. Putin terá então 80 anos,e julgando pela saúde que aparenta, a sua perpetuação no poder é uma hipótese a considerar.

Putin tem sido notícia não só pela firmeza com que dirige os destinos da Rússia, como também pelas suas tropelias, que originam episódios rocambolescos. Como parte da sua afirmação entre o eleitorado, apostou numa interpretação muito própria do culto da personalidade, inspirando parcialmente em Josef Stalin. É comum vê-lo de tronco nu a realizar tarefas duras, como a de lenhador, ou a abater animais ferozes, ou ainda a cantar em festas com recurso ao karaoke (!?), e participar de aulas de karate. Tem mesmo um vodka baptizado em sua homenagem. A imagem é cuidada de modo a parecer jovial, e recentemente divorciou-se da sua primeira mulher, Ludmila, dando força aos rumores que dão conta de uma relação amorosa com a patinadora olímpica

A sua veia humorística é também conhecida. Quando em Dezembro último se falava da previsão inca que dava conta do fim do mundo, e lhe perguntaram se acreditava, respondeu que "o mundo vai acabar, sim, quando daqui a milhões de anos o sol cessar de existir". Recentemente sugeriu a um jornalista que este "não era feliz, e talvez o Viagra o ajudasse", quando o professional da imprensa o questionou sobre o estranho facto da Rússia ter vencido mais medalhas de ouro nas Universíadas que os restantes países juntos, e que existiriam suspeitas de doping e falsificação de resultados. São ainda celebres os seus "putinismos", expressões que denotam uma nova corrente filosófica da sua autoria. Sobre o caso Snowden, que agora provoca mais um desaguisado com o velho inimigo Americano, disse no início que "é como tosquiar um porco; ele mexe-se muito, esperneia, mas não retiramos nenhuma lã". Esqueçam os pensamentos de Mao. Abram alas, eis o Putinismo.

Eis o homem que lidera os destinos da Rússia, com as suas certezas absolutas, a forma como elimina a oposição, recorrendo muitas vezes a assassinatos selectivos e prisões arbitrárias, o controlo absoluto sobre todos os aspectos da vida do ex-bloco soviético, e tudo isto sem esboçar um sorriso ou demonstrar qualquer sinal de fraqueza. Pode ser que na eventualidade de uma crise futura que exija deste homem de ferro um pouco de humanidade estejamos tramados, mas por enquanto a sua caminhada política fascina-me, ao mesmo tempo que me diverte - afinal não sou russo, portanto não me afecta directamente. Se pudesse eleger o homem do século até ao momento, mesmo tendo em conta que temos mais 86 anos pela frente, não hesitaria em escolher Vladimir Putin. Razão? Todas as referidas e mais algumas.

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