A influência da música, dos seus intérpretes e da mensagem que transmitem no tecido social das civilizações é demasiado evidente para que se duvide por um segundo. Os escravos americanos e os seus cânticos, os “baladeros” das revoluções na América Latina, a “chançon française” que influenciaria ainda os cantores de intervenção em Portugal e não só, os cantos patrióticos dos regimes socialistas, e mais recentemente o “hip-hop”, com a sua componente urbana de apelo à rebeldia das minorias étnicas, são tudo provas de como a canção pode contribuir para mudar a face do planeta. A nossa Revolução dos Cravos teve uma canção como senha, no Brasil o então desconhecido “rapper” Gabriel o Pensador fez do seu tema “Hoje estou feliz (matei o presidente)” o hino do descontentamento que levou à exoneração do presidente Collor de Mello, e na América baladas como “Blowin’ in the wind”, e Bob Dylan, foram a referência de uma geração inteira que idealizava um mundo de paz e amor. Estes são apenas alguns exemplos, e existirão muitos mais um pouco por esse mundo fora, inseridos em locais e épocas diversos.
Se a música movimenta as massas, incentivando-as para mudar o que consideram essencial, tem ainda a capacidade de mexer com as mentalidades e até com a estética. Alguns movimentos, géneros musicais e artistas têm mesmo um “uniforme” que distingue o que a eles aderem dos restantes. A possibilidade de identificar o tipo de música que alguém ouve através da sua aparência, seja em termos de indumentária, penteado e adereços variados, é um sinal de que essa música e o movimento onde se insere conquistaram o seu espaço, bem como uma respeitável legião de adeptos. Algumas das modas ferem sensibilidades, dependendo do contexto onde estão inseridas, e certas tomadas de posição podem ser consideradas censuráveis pela maioria, mas mesmo que passageiras, causam impacto e deixam a sua marca, muitas vezes abrindo a porta a outras novidades, e o mais importante, deixando bem claro que vieram para ficar.
O movimento “punk-rock” foi provavelmente o pioneiro da combinação entre género musical, moda e afirmação política. Nascido em Londres no ano de 1976, durante o período de descontentamento popular provocado pelo desemprego e pela incompetência do governo trabalhista, que viria a abrir as portas para o Thatcherismo conservador. Enquanto a dama de ferro não metia toda a gente na ordem, sucediam-se os motins, as greves, as manifestações e a contestação generalizada, tudo temperado com doses generosas de violência, e com a música dos Sex Pistols como pano de fundo. Os Pistols revolucionaram não só a sonoridade com que se cantava a contestação, dotando-lhe de uma raiva e audácia inéditas, como a aparência de muitos ingleses que aderiram ao “punk”. A imagem do “gentleman” de fato escuro, chapéu de coco, guarda-chuva e bigode encaracolado contrastava subitamente com o rebelde vestido com trapos segurados por alfinetes, calças rasgadas e cabelo espetado, por vezes pintado e/ou com crista. Durou pouco, mas fez escola.
Antes do “punk”, que provocou um maior impacto visual e sonoro tivemos na América outros movimentos que se distinguiam da “normalidade” graças às suas características particulares. Os “hippies”, os adeptos do amor livre, identificavam-se através dos cabelos compridos, das roupas de espantalho que lhes conferiam o aspecto (e o cheiro) de mendigo, os adereços de latão representando simbologia própria, e o consumo de marijuana e alucinonégios. A comunidade negra ia-se libertando das correntes da segregação, com o “funk” e o “soul” servindo de banda sonora ao andar gingão, óculos escuros volumosos com hastes coloridas, penteado “afro” e fatos aos quadrados complementados por sapatos pretos ou botas de bico. Emoção a rodos de ambos os lados do Atlântico.
O tempo de paz relativa e de alguma moderação com que se pautaram os anos 80 trouxe várias tendências que mesmo não transmitindo a mensagem marcadamente política do “punk”, deixaram muitos jovens com um aspecto que fez os seus pais e avós de queixo caído, tal era o choque de gerações em termos de aparência e comportamento. O cabelo molhado com gel, por vezes espetado, as t-shirts com motivos ou frases da moda, as roupas pretas ou as calças rasgadas tornaram-se banais, e o uso do brinco por parte dos rapazes, outrora associados com a pirataria dos mares ou a homossexualidade precoce, passou a moda. As tatuagens continuavam a ser exclusivo de marinheiros e presidiários, e ainda não se falava de “piercings”. Da mescla de modas que apareciam neste tempo, havia quem optasse por se vestir com bom gosto sem dar muito nas vistas, cabelo curto mas da moda, aspecto limpinho. Eram os “betinhos”, os meninos da mama, alvo preferencial dos mais rebeldese desalinhados.
De entre as modas dos anos 80, existiam dois grupos que se identificavam a olho nu, e que me deixavam intrigado: como tinham eles coragem de sair à rua nestes preceitos? Eram os “góticos” e os “metaleiros”. A única coisa que tinham em comum era a cor da roupa: o preto. Camisolas pretas, casacos pretos, calças pretas, botas ou sapatos pretos, com algumas variações que nunca ameaçavam a predominância do preto. Os mais velhos, alheios às oscilações da moda, olhavam para eles com um ar pesaroso, julgando que cumpriam luto devido à morte de um familiar. No caso dos “góticos” não ficavam muito longe. Estes jovens optaram pela depressão como estilo de vida, com um ar pálido e semblante carregado, dando a entender que estavam prestes a vomitar, e garantiam ser capazes de se suicidar, vá-se lá saber porquê. Talvez fosse a música horrível que escutavam, que os levou ao limite da insanidade, não sei. Depois isso passou-lhes. Os metaleiros distinguiam-se dos góticos pelos cabelos compridos, as calças apertadas que limitavam a circulação sanguínea quase até ao ponto da gangrena, e poderiam usar ou não sapatilhas com a pala de fora. A música que escutavam era muito mais animada que a dos góticos, mas em comum tinham os apelos ao suicídio, e de original a adoração por Satanás. Os que sobreviveram a estas duas fases recordam os tempos de juventude com um sorriso e pensam: “que raio de bicho me mordeu?”.
Passados mais de vinte anos desde o apogeu das modas que permitiam imitar os nossos cantores e bandas de eleição, as modas são ditadas mais pela maçonaria das revistas e da alta costura do que pelos músicos. Dificilmente alguém adere à extravagância de Lady Gaga ou de Marilyn Manson da mesma forma que os jovens do nosso tempo exibiam a luva de Michael Jackson ou as meias de renda da Madonna. Quem ostentar as vestimentas do “punk” arrisca-se a ser preso por vadiagem, ou se estiver sentado ainda lhe oferecem uma moeda. Pode parecer uma realidade distante, o tempo em que um músico ditava as modas, mas tinha muito mais piada. Que saudades.
Sem comentários:
Enviar um comentário