Uma notícia lamentável que deixa chocados os defensores dos direitos dos animais em Macau e não só, tal é a crueldade dos factos. Um homem de 64 anos, natural da China continental, foi detido após ter morto um cão com o intuito de o comer. O indivíduo estava no seu posto de trabalho ontem à noite numa central de reciclagem da Taipa, onde é segurança, quando assitiu a quatro cães a lutar entre eles. De seguida pegou num deles e pendurou-o pelo pescoço numa árvore, provocando ao animal uma morte lenta e agonizante. Após lhe ter queimado o pêlo, cortou-o em fatias e acomodou-o nas instalações da central, para mais tarde o cozinhar e comer. Uma testemunha que assistiu a tudo isto – ou pelo menos parte, dando-lhe o benefício da dúvida por não ter interferido de modo a evitar esta sequência de horrores – denunciou o caso, e as autoridades agiram. Na falta de uma lei própria para castigar este tipo de conduta para lá de reprovável, o castigo ficou pela simples multa por “acomdamento indevido de carcaça de animal”, uma mera infracção de um regulamento municipal.
Este é um tipo de notícia a que não estamos muito habituados em Macau. Um comportamento desta natureza, que requer muito sangue frio e requintes de malvadez, não é compatível com o nosso estatuto civilizacional, e mesmo sendo raro, lança um alerta de que se poderá muito bem repetir no futuro, algo que não desejamos. Se o consumo de carne de cão é um dos aspectos mais controversos da cultura chinesa, os detalhes sórdidos deste episódio pouco terão a ver com qualquer interpretação que se queira dar a “cultura”. É barbaridade, pura e simplesmente. O que levou o indivíduo a pegar o cão do meio de uma briga entre outros três? A cena de luta abriu-lhe o apetite ou terá qualquer coisa a ver com a superstição ou o “feng-shui”? E como se justifica a forma cruel com que matou o animal, quando se a intenção era apenas comê-lo e não torturá-lo, podia simplesmente provocar-lhe uma morte rápida? Não penso que o método tenha alguma coisa a ver com a textura da carne após a sua confecção. Desconheço se esta série de horrores a que este animal foi submetido seja referido em algum compêndio da literatura ou da poesia clássica chinesa, mas arrisco a afirmar que não.
Fátima Galvão, responsável da ANIMA, sociedade de protecção dos direitos dos animais de Macau, chamou a atenção para a necessidade de apressar uma lei que proteja os animais de tratamentos cruéis, e que estes casos são cada vez mais frequentes devido ao número cada vez maior de trabalhadores do continente no território, especialmente na área da construção civil. A ANIMA vem batalhando há vários anos por uma mudança na atitude no que respeita ao tratamento dos animais, e alguns dos comportamentos por vezes justificados pela cultura da região onde Macau se situa. A vontade em mudar a lei de modo a adaptá-la com os padrões mais progressistas e humanistas do Ocidente esbarram na indiferença da população, que se distancia da discussão sobre a dignidade dos animais, que para eles servem apenas para que os humanos os comam, como manda a pirâmide alimentar. Perante o desinteresse da maioria, o Governo deixa a questo arrumada na gaveta, e a discussão no cabaz do “talvez”. Pode ser que seja um dia destes, quem sabe.
A actual legislação proíbe o consumo de carne de cão, gato e outros animais fora dos estabelecidos como comestíveis. A intenção tem mais a ver com aspectos relacionados com a saúde pública e com a cultura do legislador (neste caso a antiga administração portuguesa), do que com a dignidade dos animais ou o seu estatuto de animal doméstico, no caso dos cães e gatos. Seria ideal dotar os animais que a lei já define como não destinados ao consumo humano de outra protecção além da proibir que sejam comidos. Se o sádico desta história resolvesse apenas matar o cão em vez de o transformar em carne do talho, não lhe acontecia nada. A cobro da impunidade ou na eventualidade de uma simples multa caso se vá mais longe, fica fácil para quem agrida, torture ou abandone um animal. Se calhar até dá gozo a certos pelintras descarregar numa criatura indefesa e sem protecção legal as frustrações provocadas pelo mundo dos humanos. Arrancar um olho a um gato ou espancar um cão à paulada não lhes vale um processo judicial.
No entanto convém não generalizar quando se faz a relação com os casos de abusos a animais e os trabalhadores do continente chinês. É um facto que na China se come carne de cão, mas não é a maioria que o faz, e a tendência é para o número de apreciadores vá sendo cada vez mais reduzido. O fenómeno varia de uma região para outra, e começa a ser associado com os estratos sociais mais baixos, e rejeitado pelos mais educados. Tem havido nos últimos anos uma consciencialização significativa de que um cão ou um gato são animais domésticos, e nota-se uma mudança para melhor no aspecto da “indiferença”. Basta olhar para o caso recente de um festival dedicado à carne de cão, a que milhares de cibernautas em todo o país reagiram com revolta, expressando a sua reprovação nas redes sociais. A vinda de mais trabalhadores do continente pode ser uma razão para a ANIMA e outras associações dedicadas a este particular a ficar mais atentas, mas não representa um perigo por aí além para os cães e gatos de Macau.
Aqui o que é necessário ter em conta é o cumprimento das leis e dos costumes de Macau, que é um dever tanto de residentes como de emigrantes e visitantes. Se no território é proibido comer cão, o senhor que cometeu esta horrível crueldade pode esperar até regressar à Parvónia de férias ou em definitivo para matar saudades. Caso não consiga passar sem o petisco, que fique por lá e não venha para onde não lhe é acessível saciar os seus apetites, em vez de decidir de forma tão egoísta violar a lei. Se eu for viver para a India, tenho que respeitar as leis e os costumes que estabelecem a vaca como animal sagrado, por muito que me apeteça um bitoque. Se for viver para a Arábia Saudita ou outro país onde o consumo e carne de porco é proibido, e não passar sem a ocasional chispalada, posso sempre optar por não ir. O importante é cumprir e respeitar a lei do país de acolhimento.
As associações que se dedicam à luta pela protecção dos animais da crueldade dos humanos têm um propósito válido, mas cometem por vezes exageros que levam a que muita gente não os leve a sério. A mais conhecida de todas, a PETA, defende "tratamento equalitário para pessoas e animais", e assume essa intenção logo na sua sigla: "People for Equal Treatment of Animals". Ora se eu quiser minar este princípio que muitos podem considerar legítimo, posso interpretar isto como uma justificação para que os humanos que comam animais possam comer também outros humanos, dando-lhes assim um "tratamento equalitário". Agora sem graçolas, é verdade que cometer actos de crueldade contra animais, seres que apesar de não se conseguirem expressar, sentem medo e dor, é errado e devia ser punido por lei. Mesmo que o animal nos vá servir de alimento, deve-se fazer o possível para minimizar o seu sofrimento. Agora para que a mensagem chegue a todos de forma consensual, é preciso evitar alguns exageros. A ideia que se pode conviver com um animal irracional da mesma forma que com outro ser humano, e impôr à força estilos de vida como vegetarianismo leva a que muitos encolham os ombros.
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