Esta semana o
artigo de opinião do Hoje Macau é o primeiro daquela que espero ser uma pequena série em que me dedico a partilhar com os leitores algumas conclusões que retirei da nossa convivência - e falo como estrangeiro e ocidental, mas ao mesmo tempo residente de Macau - com outra cultura, neste caso a que predomina em termos étnicos, muito graças à própria situação geográfica do território onde todos vamos fazendo pela vida. Espero que gostem, agradeço se já estão a acompanhar ou se fazem planos nesse sentido, e recordo que as opiniões expressas são do foro pessoal, e qualquer um é mais que bem-vindo a comentar, discordar, dinamizar...eh, eh, lá está. Posto isto, a continuação de um bom fim-de-semana.
Ser estrangeiro num local tão distante e culturalmente tão antagónico como a China significa submeter-se a um fútil mas interessante exercício de adaptação a certos valores, alguns deles absolutamente intragáveis à luz do que consideramos serem princípios elementares, e sem os quais não é possível sustentar as relações humanas. Estes princípios foram-nos emanados por períodos ou episódios da História que não tiveram na China um paralelo que lhes sirva como referência, e mais importante do que isso, que os torne quantificáveis – os chineses só levam em conta aquilo que se pode quantificar. A este ponto é possível que já haja quem me esteja a acusar de estar a cometer uma generalização injusta, e que em última instância possa ter que pagar por isso. Aí está, é exactamente aqui que reside a grande diferença entre as nossas culturas, e é essa reacção que esperam de nós: impetuosa, derivada de um juízo que é feito logo após a segunda frase do texto, e uma repreensão com num intimidatório implícito, um sermão que ninguém encomendou.
Aquilo que nós chamamos de “racismo” é algo que para os chineses adquire a qualidade de “abstracto”, não se quantifica e portanto não serve um fim específico – é portanto “inútil”. O povo chinês faz uma diferenciação entre a sua própria etnia com base na origem, condição social, e se for mesmo pertinente, a ancestralidade ou o apelido. Se isto já é complicado, o que seria caso tivessem um contraponto que ao mínimo “toque” levantasse a questão da descriminação e do princípio da “igualdade”? Este é um raciocínio que por muito que eles tentem entender não conseguem tirar o sentido: qual igualdade, se a primeira noção que adquirem é a do indivíduo, e de que a diferença é algo que é dado a saber logo pelo sentido da visão? E o que é isso, “descriminação”? Alguma vez viram os chineses da diáspora a fazer “lobby” no sentido de serem integrados no país de acolhimento, ou a queixarem-se que são “guetizados”, ou outra designação que nós ocidentais nos damos ao trabalho de produzir e com isso levantar questões que levam debates intermináveis, onde existe necessariamente um agressor e uma vítima?
Quando se comete a audácia de fazer uma análise a este povo há algo que temos que ter sempre em conta: são uma civilizaçāo com um passado de cinco mil anos, e onde não houve nada semelhante a um Renascimento ou uma Revolução Francesa. Não significa que os chineses não prezem valores como a liberdade, ou valorizem a justiça, mas é tudo encarado de uma forma tão pragmática que não permite deambulações do foro ideológico, e onde as convicções valem o que valem. Reparem como os autores chineses de referência continuam a ser Confúcio e Sun Tzu – a obediência, ou em alternativa a guerra, o vencedor e o vencido, o poder que se conquista pela espada . Onde estão os equivalentes chineses de Montesquieu, de Shakespeare, de Voltaire ou de Nietzsche? Mesmo a poesia era uma audácia reservada aos intelectuais caídos em desgraça – ninguém foi estudar para se tornar poeta. Du Fu era um oficial do governo afastado devido ao seu carácter íntegro que o tornou incorruptível, Li Bai é pelos padrões actuais considerado um “louco”, quem bastava olhar para a Lua para fazer um poema, e vivia praticamente de esmolas oferecidas por quem procurava entretenimento.
Sax Rohmer, escritor inglês do início do século XX celebrizou-se por ter criado o personagem do Dr. Fu Manchu, o estereótipo do vilão oriental, neste caso o chinês. Como o próprio nome indica, este Fu Manchu era um médico, ou cientista (a origem do personagem foi sendo alterada de acordo com a própria história da China), um génio do mal, metódico, calculista, conhecedor da mente humana e especializado em venenos, e eventualmente tinha duas ambições: a riqueza material e o segredo da imortalidade. Rohmer nunca terá viajado pela China, ou sequer por Hong Kong, e inspirou-se nas qualidades que observou nos chineses e que parecem mais evidentes depois do choque cultural: a ambição desmedida, a perfídia, a ausência de valores considerados próprios da cultura cristã, casos da misericórdia ou da compaixão. Nada disto é racional, claro, mesmo que interpretemos algumas das diferenças que nos separam como vestígios deste arquétipo – é a reacção normal de quem não se identifica com algo e impulsivamente vê nisso uma luta entre o bem e o mal.
Não surpreende portanto que a tabela com que avaliamos certas atitudes, comportamentos ou juízos de valor nos deixem muitas vezes chocados e a pensar por vezes que existe qualquer coisa de desumano em tudo isto, algo que é identificado mas poucos procuram entender a razão de ser. Essa é uma tarefa que se reveste de uma presunção tamanha que seria o mesmo que tentar encontrar o princípio e o fim do universo. Mas podemos aprender sempre mais um pouco, e enquanto eles não ambicionam a ser igual a nós, vão dando umas pistas enquanto se divertem a observar como as seguimos, utilizando a lógica como régua e esquadro para desenhar o seu perfil. Somos um Li Bai à procura do Dr. Fu Manchu.
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