quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Depois deles, o caos



Fazer a opção de permanecer em Macau após Dezembro de 1999 foi, como se pode imaginar, uma das decisões mais difíceis que precisei de fazer na vida. Difícil no sentido de perspectivar os anos seguintes à transição, não no que me diz respeito em particular, mas à própria região na sua globalidade, e à própria China, num contexto mais alargado. A estabilidade política depende de um complicado equilíbrio de factores, e basta o artista dar um passo em falso para que a loiça se transforme em cacos, e até que se substitua o conjunto e se recomponha o artista (ou se encontre um outro para o seu lugar) o circo fecha para obras, e a empreitada requer a participação de todos os intervenientes no espectáculo, mas apenas estes: os espectadores ficam de fora, aguardando o início da nova temporada, e no que a esta metáfora diz respeito, estes "espectadores" são os estrangeiros. Na hora dos ensaios, fora de cena quem nao e de cena, ou se quisermos transpor isto para o "futebolês", o treino é à porta fechada. Com esta introdução quis transmitir uma ideia a que já voltarei mais à frente, mas vou adiantando que fico surpreendido com certas posições assumidas por pessoas que das duas uma: ou padecem de uma grande ignorância quanto ao local onde estão inseridos, ou são masoquistas.

Num território imenso e heterogéneo como a China, onde a etnia Han é predominante (na ordem dos 92%) existem sensibilidades que variam de região para região, ou de uma província para outra. Mao unificou a China mas teve consciência de que a "cola" não poderia segurar o prato já restaurado durante muito tempo, e foi tentando afastar os braços que iam tentando abanar a prateleira e deitar tudo a perder. O Grande Timoneiro, o fundador da R.P.C. que adquiriu o estatuto de herói ao ser o primeiro a unificar esse grande território, que Gengis Khan desbravou, que encantou Marco Polo, onde atracaram os navegadores portugueses, os ingleses tentaram conquistar pelo ópio e os japoneses ocuparam através da agressão. Mas a unificação foi feita com base num pressuposto ideológico, portanto volátil, e mais do que aplicar a doutrina socialista e caminhar para a utopia de um estado acéfalo, concretizando o sonho de Marx e Lenin, Mao aproveitou a hegemonia do partido que fundou para eliminar o inimigo. Este inimigo, que já aqui referi no outro dia, é o "outro" - na China há o poder e o anti-poder, e pouco importa a metamorfose que cada um assume, são os mesmos que vêm disputando o domínio do território desde os tempos mais remotos.

A China nacionalista e republicana, fundada por Sun Yat-sen em 1911 foi um fracasso, com a lei a ser ditada por quem tinha as armas, e com as potências ocidentais a fazer os possíveis para manter o país retalhado, desunido, e assim mais fácil de controlar. Aproveitando a fragilidade do país do meio, o império nipónico invadiu-o, utilizando para isso a agressão brutal. Objectivo: hegemonia na Ásia-Pacífico, e a única forma de convencer os países subjugados é agredindo-os, não propondo-lhes uma paz semelhante à "pax romana", ou uma rendição incondicional sem resistência, como fizeram os exércitos de Gengis Khan. Mao e o general Chang Kai-shek deram as mãos até à intervenção dos americanos, e o papel decisivo destes na derrota dos japoneses marcou o início da influência dos Estados Unidos na região. Posto isto dá-se a Guerra Civil, e a Rússia comunista apoia Mao, temendo que os americanos, já instalados em Okinawa e nas Filipianas chamassem a si o controlo da região onde se encontrava a maior parte do território soviete. Os comunistas derrotam os nacionalistas, que se exilam na Formosa, e já com a Guerra Fria a todo o gás, russos e americanos disputam a península da Coreia, dando-se aí um "empate" cujas mazelas ainda hoje continuam por sarar. E assim teve início a novela que teve no movimento "Occupy Central" mais um capítulo.

Mao avançou com reformas económicas e dois grandes planos que redundaram em fracasso, e sempre com um olho no inimigo ali ao lado, em Taiwan. Ao sentir que começava a ser afastado do poder com a obra da consolidação do poder inacabada, lança a Revolução Cultural, deixando assim os "gatos a brigar dentro do saco", enquanto procedia à "limpeza". Em 1972, sentindo que o seu tempo estava a acabar e a Rev. Cultural morreria com ele, chama o "grande inimigo", os Estados Unidos, e dos seus encontros com Richard Nixon terá ficado desenhado o plano: convergência gradual com Taiwan tendo como pedra basilar a economia, assumindo-se esta como prioridade , ficando acima de todo o resto, desde ideologia até rivalidades internas; seria a unificação plena sob o signo do cifrão. Mao morreu em 1976, e apesar de não ser esse o seu desejo, sucedeu-lhe Deng Xiaoping, o que acabaria por ser óptimo para a China, mau para os Estados Unidos, e péssimo para as forças da oposição - e nesse aspecto também não terá sido bom de todo para a própria China. Deu-se a abertura ao exterior, o crescimento da economia ultrapassou anualmente a barreira dos oito por cento, e estava tudo a correr sobre rodas quando se deu Tiananmen. Os incidentes de 4 de Junho de 1989 resultaram de uma "brecha" que foi aberta pela queda da cortina de ferro, e com o fim do comunismo no leste europeu, os americanos pensaram em "limpar" a Ásia, e assim eliminar não só o maior foco de marxismo-leninismo depois da defunta URSS, mas ainda os residuais Vietname (uma derrota que custou a digerir), Laos, Cambodja, e já agora "arrumar" a situação da Coreia.

O fracasso do movimento estudantil do 4 de Junho pode-se ter devido a um erro de cálculo: afinal o regime não estava tão fragilizado quanto se pensava, pois Deng preocupou-se em saber junto do exército se tinha o seu apoio. E tinha mesmo, e se o inimigo não lhe deu outra alternativa senão o derramamento de sangue, foi isso que ele lhes deu. O massacre levantou sérias dúvidas quanto à vontade da China e do partido em levar a cabo a convergência com Taiwan, mas se isto poderia ter custado um regresso à estaca zero, deu-se um "milagre", com um conjunto de circunstâncias favoráveis à um novo arranque a todo o gás da economia; o Japão estava a braços com uma crise económica, Bill Clinton era eleito presidente dos Estados Unidos e apostou mais na redução do "deficit" interno do que na política externa, e a "democracia" que tinha nascido das cinzas da União Soviética não era um exemplo para ninguém. A China foi deixada "à solta", e pelo final do milénio aderia à OMC e tornava-se na terceira maior economia mundial, mas em PIB bruto, mantendo-se no entanto ao nível dos países do terceiro mundo no PIB per capita. Segundo uma análise do Financial Times datada de 1997, não fosse o massacre de Tiananmen e a China teria atingido o PIB per capita da Argentina ao virar do milénio, e noutro ainda mais recente, de 2012, que poderia ter atingido a tão almejada "democracia" por volta de 2004 e 2005. E agora isso fica para quando, afinal? Já lá vamos.

Deng deixou-nos antes da transferência de soberania de Hong Kong, não podendo assim assistir a um único dia de aplicação do princípio de ele próprio idealizou, o de "um país, dois sistemas", criando uma região administrativa especial na ex-colónia britânica, ao que se seguiria a mesma política para Macau. Esta era uma versão revista e aumentada da Zona Económica Especial, ensaiada nas cidades limítrofes de Zhuhai e Shenzhen, só que em vez de apenas se investir no estímulo da economia, apostava-se no tal "segundo sistema", com base no tão apregoado "elevado grau de autonomia" contemplado nas famosas "leis básicas". O que Deng deixou também foi o limite de mandatos para a presidência da RPC, o que acabou por se revelar um erro. Jiang Zhemin e Hu Jintao sucederam a Deng, sempre a prazo, e à medida que economia produzia cada vez mais riqueza, intensificou-se a corrupção, e com a perspectiva de poder chegar à liderança a médio, foram-se formando mais grupos, acentuando as cisões dentro do partido. E aqui é que jaz a principal falha que os actuais movimentos anti-regime têm aproveitado. O Partido deixou de evoluir, parou, e não conseguiu adaptar-se à nova realidade, quer económica quer social do país. A imagem que transmite actualmente é a de desunião de desinteresse pelas necessidades da população, numa espiral disfuncional que deixa transparecer que a luta interna pelo poder os deixa demasiado fragilizados para responder a um ataque externo. O desaparecimento de Xi Jingping em Setembro de 2012, antes da sua nomeação como sucessor de Hu Jintao foi um facto que teve tanto de inédito como de bizarro. Ficou-se a saber mais tarde que o regime passou por uma das suas maiores crises de sempre em finais de 2011, apenas superada por uma mais recente, em Agosto deste ano, pouco antes do início deste movimento.

Mas voltando ao que Deng deixou de bom, reparem como antes da criação das RAE muitos desconfiaram das intenções da China, em que não cumpriria os acordos estabelecidos - mas com mais ou menos eficácia foi cumprindo, mesmo à custa de ter uma preocupação acrescida em conter o descontentamento da população do continente, que não tem os mesmos direitos. Por exemplo, existe liberdade de imprensa e de expressão com defeitos. Vamos lá ver, se cada vez que assistimos a um exemplo de violação de uma dessas liberdades, sai tudo à rua aos berros "ai ai não há, ai ai que mentirosos", e calam-se se as situações se começam a repetir. Temos internet sem censura (a propósito, o site da XVideos já funciona), temos a liberdade de sair do território sempre que quisermos, de conversar com um grupo de mais de cinco amigos sem que isso seja considerado "reunião não autorizada". Exprimentem aceder a qualquer "site" associado com a Google na China, e já agora aproveitem para berrar na cara de um polícia, criticar o regime ou falar-lhes de "democracia". E tem graça como se atiram ao ar conceitos como "democracia" ou "desobediência civil" por toma lá daquela palha. Alguém sabe o que significa "desobediência civil"? Esta é uma das formas mais extremas de protesto, significando precisamente "ir contra um governo civil". Portanto seja o que for que estes "amantes da liberdade" querem, o que pode justificar esta posição tão extrema? Fome? Segregação? Lei Marcial? Prisões por delito de opinião ou de convicção política. Ainda não, mas por este caminho ou pelo outro que pretendem tomar, não faltará muito.

Entende-se a posição que levou a esta iniciativa, e estamos aqui a falar de Hong Kong, que negociou uma calendarização para a reforma democrática, que incluía entre outras exigências a eleição do Chefe do Executivo pelo sufrágio directo e universal, sem qualquer tipo de limitações em termos de escolha dos candidatos ou liberdade de voto. É um facto que a China compremeteu-se a um princípio de acordo a este respeito, mas timidamente, e como seria de esperar não pode dar total liberdade de escolha à população da RAEHK: o candidato tem que ser alguém com quem Pequim possa dialogar, pois trata-se afinal de uma região sob a sua soberania. E basicamente é isto que está em causa; o movimento sabe perfeitamente que o Governo Central não vai ceder, e joga com a sua actual situação, fragilizado pelas tais questões internas, para colocar em cima da mesa uma eventual secessão da R.P. China, assumindo uma autonomia total baseada nas democracias ocidentais. Para este efeito conta com o apoio mais que declarado dos Estados Unidos, que vêem assim a grande oportunidade de instalar no país uma "democracia parlamentar multi-partidária". Eu não vou rir porque isto é demasiado sério para levar a brincar. Os americanos estão cansados de saber que levar algo desta envergadura para a frente provocaria um efeito dominó, que resultaria na queda do regime. Actualmente existe um impasse que apenas a negociação poderá resolver, mas dificilmente se registarão avanços no sentido de deixar tudo na mesma. O desfecho é difícil de prever sem saber o que pensa o elemento decisivo desta equação: o exército. No limite será o apoio dos militares que determinará o desfecho desta crise, e dificilmente se evitará um banho de sangue - não se assustem, que um "banho de sangue" na China até é visto como uma "saída airosa" em certos casos.

Os organizadores do "Occupy Central" sabem que no que diz respeito a Hong Kong esta é a última oportunidade para conseguir pelo menos o objectivo inicial: o sufrágio directo universal em 2017. O actual CE, C.Y. Leung, diz que está disposto a negociar a possibilidade de avançar com o sufrágio em 2022, o que seria mais uma forma de ganhar tempo, e os democratas já não vão na conversa. Num âmbito mais alargado, este é um barril de pólvora com rastilho na RAEHK e que rebentará em Pequim; os americanos sabem muito bem que nunca poderia existir uma democracia parlamentar na China. Eleições com um possível universo de centenas de milhões de eleitores que nunca viram uma urna, um programa político, a quem nunca foram dadas opções e sabem apenas fazer o que lhes mandam? Multi-partidarismo como? Se existirem dois partidos ambos vão querer o poder pleno sem qualquer oposição, e se forem quatro ou cinco, vão todos querer o mesmo. Debates de ideias? Acesas discussões parlamentares sobre estratégias assentes em ideologias? Está tudo maluco ou quê? O mais remotamente semelhante a "democracia" que podíamos pedir para a China era o abrandamento da censura, a introdução gradual da liberdade de expressão, imprensa e associação, bem como uma progressiva separação dos poderes, e claro, aí teria prioridade um sistema judicial independente. E isto meus amigos, é tudo muito complicado para introduzir num país com 1200 milhões de habitantes que em 5000 anos nunca teve nada disto, e olhem que não estou a ilibar o regime de responsabilidades, pois deviam ter evoluído com o resto da humanidade - tudo o que lhes chegar ao prato foi o que escolheram do cardápio.

Mas e nós, como é? O que acontece se mudarem os inquilinos do palácio? Mau, péssimo. A China não tem uma História: tem um passado. A História ensina-nos lições, o passado contém erros que sucessivamente se repetem. A tomada do poder, especialmente quando este está tão enraízado - é preciso não esquecer que o P.C. chinês controla todos os aspectos da vida do país, as empresas, desde a electricidade à água, passando pela banca e pela indústria alimentar, regula os horários dos serviços, dos transportes, das escolas, em suma, tem tudo nas mãos e não vai entregar a ninguém ou ensinar como se faz. Vai ser um caos, uma transição que nunca será breve e deixará o país paralisado (diria oito a dez anos no mínimo), e nunca será sem resistência que isto acontece. Uma vez no poder existe a tendência para fazer o oposto de tudo o que era feito pelo regime cessante, e aí no que a Macau diz respeito digam adeus aos casinos, e nem pensem que vêm cá aqueles tipos do continente que nos enchiam os cofres com as receitas do jogo. Porquê? Bem, ou fugiram, ou estão presos, ou mortos, em qualquer dos casos em qualquer lado menos a caminho de Macau para estoirar a massa que "gamaram" desta sistema "viciado e corrupto" do qual dependemos. Pois é meus amigos, por acaso nós até temos uma alternativa enquanto se fecha outra vez o saco dos gatos. Sim, não pensem que os estrangeiros vão ter lugar nesta "nova ordem", e não pensem que vai valer o facto de terem "apoiado" a causa. Recomendo que leiam "Antes que anoiteça", a autobiografia do escritor cubano Reinaldo Arenas, que apoiou a revolução socialista de Fidel Castro, vindo mais tarde a ser segregado devido à sua homossexualidade, vindo depois a ser detido, exilado e passando o resto dos seus dias do lado da oposição até morrer de SIDA aos 47 anos, em Miami. As paixões acabam assim, quando não entra no jogo o amor.

É heróico, sim senhor, ouvir os jovens bradar urras à democracia, à liberdade, e logo onde existe liberdade para o fazer. Irónico. Em quantos países se pode sair à rua e insultar as autoridades? É comovente vê-los ali a com livros na mão, títulos muito democráticos, de autores como Larry Diamond, que diz que "democracia para a China, já; não estão preparados? vão-se habituando". Claro que sim, faz todo o sentido. É como ter o tamanho do pé 44 e calçar-lhe uns sapatos tamanho 36 - eventualmente "adaptam-se". Era bom que lessem os livros atentamente em vez de aparecerem para o "boneco" com eles na mão e uma cara de quem se prepara para transformar o presente. E já agora leiam opiniões contrárias, e reflictam sobre qual é a vossa verdade. Reflectir, pois os livros servem para isso mesmo, e não são um manual de instruções que ensinam a montar uma democracia como se fosse uma tenda de campismo. Quantos manifestantes no "Occupy Central" sabem ao certo o porquê de estarem ali a protestar? Têm ouvido o que dizem alguns deles? Entre os que nem sabem porquê há os que dizem "Estou aqui porque fui convocado no meu grupo do Facebook"; "Vim com o meu grupo fazer uma 'flash mob'", e entre os mais entusiastas há aqueles que dizem "querer morrer" pela causa, a que deram o nome de, atenção a isto, "umbrella revolution" - Revolução do guarda-chuva. Quando for a revolução da pantera cor-de-rosa chamem-me.




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