domingo, 26 de outubro de 2014

Para males diferentes, o mesmo remédio?



Os acontecimentos das últimas semanas em Hong Kong captaram a atenção dos média estrangeiros, que fazem deles a habitual leitura: foco de instabilidade na China, forte possibilidade do regime de Pequim ceder e eventualmente cair. Estando nós deste lado, e tendo como referência o caso que conhecemos melhor, a portuguesa, sabemos que isto não é a mesma coisa que sair um governo PSD e entrar outro do PS, ou ver o Presidente da República dissolver o parlamento e convocar eleições antecipadas, tudo coisas a que já estamos mais ou menos habituados e até já nos deixam a sorrir perante a forma cómico-trágica com que encarados a nossa democracia. Agora no que à China diz respeito, não estamos bem a falar da "mesma coisa"; somos um país com dez milhões de cabecinhas pensadoras (às vezes menos às vezes mais), o que na China representa uma cidade, e nem chega a uma das mais populosas: só a área metropolitana da grande Guangzhou, da província de Cantão, tem mais de 40 milhões de habitantes, de um total de 1200 milhões em toda a China, sendo um quarto desta população composta por trabalhadores migrantes. Imaginem o que seria quando fossem "à terra" passar a Páscoa com a família e tivessem 200 milhões de tipos como vocês à espera do comboio, do autocarro ou de outro transporte, e quem tem carro deve estar agora a reconsiderar o conceito de "utilitário" quando aplicado a essa imensidão que é a China.

No topo de tudo isto, que já não é pouco, está o "capitão do navio" - alguém tem que meter esta gente na ordem, pois apesar da infame política do filho único, imposta já depois do fim do maoismo, aqui pode-se dizer literalmente que os chineses são "mais que as mães". Em matéria de população chegaram a ser um quinto de todo o planeta, e hoje andarão pela ordem de um em seis habitantes da Terra, e não porque a imposição das medidas de controlo da natalidade tenham provocado um efeito de "marcha atrás", servindo apenas de travão ao que poderia ter sido uma invasão, o que o Ocidente vinha temendo vai para um século: o perigo amarelo. O que temos hoje não são menos chineses que antes, mas um aumento brusco da natalidade em países ditos "em vias de desenvolvimento", nomeadamente no sub-continente indiano e no sudeste asiático. Mesmo sendo um dado adquirido que a população da India ultrapassará a China em poucos anos, há sempre que ter em conta o "dragão asiático", e quando se fala de "queda do regime", aqui a palavra "queda" não tem o mesmo impacto que o miúdo de três anos que cai do triciclo, ou do lavador de pratos que deixa cair um alguidar de loiça.

Quem estiver completamente por fora deste assunto, pode estar agora a pensar: "como é que uma cidade com sete milhões de habitantes como é Hong Kong pode determinar o futuro de uma realidade imensamente maior?". Da mesma forma que um pequeno rastilho pode fazer rebentar com toneladas de dinamite, lá está. Hong Kong tem sido desde sempre o espinho encravado na pata do dragão, e isto começou logo pela génese do território onde se localiza uma das grandes praças financeiras mundiais: arrematado pelo império britânico a troco de ópio, o que se traduz hoje por uma ninharia. E não foi por acaso, pois os ingleses aproveitaram as qualidades daquela planta que trouxeram da India com o intuito de juntar os chineses ao grupo de súbditos de Sua Majestade. Talvez a sua origem infame não tenha muito a ver com a actualidade, mas a verdade é que o territorio foi sempre conhecido como porto de abrigo a todos os que eram perseguidos no interior do continente - quanto mais abastados fossem, mais bem vindos eram, o que ficou demonstrado pela pouca hospitalidade com que foram recebidos os refugiados vietnamitas, a "boat people", um problema que ainda está por resolver em definitivo.

Terá sido mais por culpa da instabilidade na China de Mao do que pela boa vontade dos senhorios ingleses que o movimento pró-democracia ganhou a força que tem hoje - aliás em termos da salvaguarda dos interesses dos residentes ultramarinos do império, penso que ficou tudo dito com a questão dos passaportes. Estes movimentos nunca esconderam qual era a sua base de apoio: os nacionalistas de Taiwan, derrotados na guerra civil pelas tropas comunistas, e remetidos para Taiwan, onde Pequim manteve sempre uma apertada vigilância. No entanto em Hong Kong criaram uma base de operações que lhes dá um acesso mais facilitado ao continente, ganhando aliados que foram recrutando entre a população local, especialmente a mais jovem, que já por si olha para o actual regime chinês com desconfiança. Regime esse que não está isento de culpas no cartório, pois não soube apoveitar as vantagens do sacrossanto segundo sistema, deixando-o na RAEHK a cargo de gente com pouco tacto e nenhuma cultura política.

O movimento "Occupy Central", que agora começa a dispersar e perder o apoio que inicialmente lhe foi dado pela população anónima, a que nada tinha a ver directamente com esta luta, foi uma iniciativa que visava muito mais do que trazer democracia para Hong Kong; já o afirmei aqui várias vezes, mas essa pretensão seria apenas um pretexto para causar no continente um efeito dominó, aproveitando-se da fragilidade do regime para regressar ao poder. Digo "regressar" porque é disso mesmo que se trata: na China existem duas forças, como sempre existiram, uma no poder, e outra na busca desse poder. Não se pense que aqueles que se denominam hoje de "democratas" são muito diferentes dos nacionalistas da I República, fundada em 1911 por Sun Yat-Sen, e se não sabem como era a China antes das invasões japonesas, procurem saber: não tenha nada a ver com democracia, pelo menos no sentido como é entendida. Manter o actual "status quo" pode não ser muito producente, mas na situação actual acaba por ser um mal menor. Quem apoiou o movimento a que ousou chamar revolução não tem nada com que se envergonhar, mas não posso deixar de fazer este reparo: algumas das atitudes demonstradas pelos manifestantes nada abonam a favor da "democracia" pela que diziam estar ali a lutar. Lutar nem sempre quer dizer brigar.

O regime perdeu uma excelente oportunidade no período de grande crescimento económica de 1999-2009, para se reformar e adaptar-se às exigências do novo século. Se não o fez pode ter sido por temer revelar sinais de fraqueza, mas já não é segredo para ninguém que as lutas internas se têm intensificado, a corrupção é endémica, e o pouco apoio que têm é de gente directamente interessada na continuidade do partido único no poder; não se pode pedir o apoio às massas com atitudes paternalistas e opressoras, e a censura tem funcionado como um rombo no dique do sistema. Nada serve para justificar certas atitudes da parte das autoridades num regime totalitário, especialmente tendo como valores fundamentais a liberdade de expressão, de associação, de culto e todas as restantes que se confundem com "democracia". Esse tem sido o grande problema, e o erro que se comete quando se analisam estas questões, primeiro o caso de Hong Kong, e depois o da China - e tenham sempre em conta que esta é a minha opinião; não sou o dono da verdade nem reconheço em mim quaisquer poderes hipnóticos, mas não entendo que a "democracia" seja uma panaceia para todos os males.

A democracia é uma ideologia, uma teoria que aplicada transforma-se num sistema político, e não é infalível - não estamos aqui a falar de uma aspirina para a dor de cabeça. Estamos aqui a falar de um país que foi unificado à força, e onde não existe uma grande vontade de manter essa unificação, e há províncias com uma ideia muita própria de como as coisas deviam funcionar. É um pouco como a Espanha, mas mil vezes pior, e ligado à corrente eléctrica. Pode ser que haja quem entenda nisto algum comodismo, mas apesar de confessar que não me dava jeito nenhum que o regime caisse, pois com toda a certeza seriam cometidos excessos brutais - como é do apanágio de qualquer mudança do poder na China - seria muito pior para os chineses, e francamente não lhes desejo esse mal, nem estando longe do seu epicentro. Dizer que a China devia tornar-se numa democracia parlamentar,e pouco importa se está ou não preparada para isso, era como dizer que vou demolir a vossa casa e construir uma nova, não sei quando vai estar pronta ou se vou conseguir realizar a a tarefa, e enquanto esperam vão viver noutro sítio. Não têm outro sítio? Vão viver ao relento.

Pensar numa "democracia parlamentar" neste momento na China leva-me a pensar num cenário dantesco, onde existiriam mil e um partidos, desde os homens do lixo aos polícias, dos habitantes do bloco XX de um complexo residencial, e entre todos estes haveria sempre uma luta pelo poder interno. Eleições democráticas? Imagino banquetes organizados por um partido, com elementos de outro partido rival a envenenar toda a gente, e eleitores que demonstrassem o seu apoio a uma das forças a serem assassinados a caminho das urnas. Debates televisivos? Sim, até um dos candidatos ficar sem argumentos e sacar de uma pistola, e aí passa a ser um duelo ao pôr-do-sol, ao estilo do velho faroeste. Não surpreende que os americanos digam que a tal "democracia parlamentar" seria a "a solução ideal" - para eles, lógico, pois num estado de anarquia não seriam os próprios chineses a beneficiar com a mão-de-obra barata, sem um braço forte para evitar a exploração e a pilhagem. Para os chineses não seria trazer a democracia: seria mandá-los à democracia, como quem manda alguém a tal sítio.

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