Está outra vez na ordem do dia o caso Bill Chou, o professor de Ciência Política da Universidade de Macau suspenso em Junho e posteriormente despedido (contrato não renovado), alegadamente devido à sua actividade paralela de activista pela Associação Novo Macau (ANM), a que se juntou oficialmente em Novembro de 2013, mas com a qual participou de diversas actividades desde meados de 2012. A cronologia do início da ligação de Bill Chou ao ANM até à sua filiação e consequente afastamento da UMAC, que vinha exercendo há mais de dez anos é fácil de estabelecer: basta aceder à sua página do Facebook e verificar as datas das fotografias publicadas. É um exercício tão interessante quanto misterioso, e que não chega sequer a levantar a ponta do véu sobre o que realmente aconteceu ao docente, e que abriu o debate sobre a liberdade académica e a liberdade de expressão em Macau, ou a falta dela. A juntar ao prejuízo que a polémica trouxe para a credibilidade do ensino superior no território, seguiu-se o despedimento de Eric Sautedé, professor de Ciência Política na Universidade de S. José, dando a entender que aparentemente as questões da política são tabu, e para quem ainda acredita em coincidências, não existe qualquer ligação com a actual situação em Hong Kong. É melhor ficar sem saber e evitar assim alguns amargos de boca, mas no que a esta controvérsia me diz respeito, prefiro analisar a questão do ponto de vista de todos os encarregados de educação que fazem planos de colocar os filhos em instituições superiores de ensino locais, mesmo que não tenha essa certeza. Pode ser que seja essa a opção, mas claro que depende mais do meu educando do que de mim próprio.
Antes de continuar gostava de contar um episódio que se passou comigo. Estava no 11º ano e tinha um professor de História que era louco, coitado. Não era "louco" no sentido de que ficava na discoteca até às oito da matina e a seguir ia dar aulas cheio de "speed", com óculos escuros para tapar os olhos regados de vício; era louco no sentido de que havia sofrido alguma espécie de transtorno, e pelo que nos foi dado a saber isto esteve relacionado com um divórcio complicado, mas durante os três anos em que lecionava na minha escola ostentava uma aparência bizarra: barba comprida e preta, ar esgazeado que assumiam uma expressão desvairada quando fazia o seu ameaçador ar de choné, camisa de flanela com impermeável azul e calças de bombazina, complementado com um guarda-chuva, e era isto que ele usava todo o ano, fizesse chuva ou sol, fizesse calor ou frio. Caminhava todos os dias do Cais dos Vapores até à Bela Vista, onde ficava a escola, um esticão de bem mais de 4 km, e depois voltava também a pé. Antes de nos ter saído na sorte, os professores diziam horrores dele, que tinha um discurso tão carregado de sarcasmo que nada do que dizia podia ser levado a sério, e fazia de cara de cínico cada vez que acabava de dizer uma frase, fosse "bom dia" ou "um café, por favor". As professoras evitavam-no, e os professores estabeleciam distâncias; não que o ostracizassem, mas depois do segundo ou terceiro contacto já era evidente que não era possível estabelecer um diálogo coerente com ele. Emanava um odor incómodo, não muito forte, mas que se acentuava com a colónia Denim que usava para disfarçar a evidente falta de uma mão feminina em casa. Nunca se soube o que realmente aconteceu que o terá deixado naquele estado - ninguém chega a professor nestas condições - mas nada do que ele dissesse podia ser tido como verdade.
E nestes termos chegou aos "indios" do 11º de Jornalismo, e apesar de nunca ter tido uma queixa de qualquer aluno, estava habituado a turmas mais novas, e perante aquele grupo de jovens adultos descontrolou-se completamente, como se estivesse a antecipar intenções que nunca entendi bem quais eram - para ser sincero não entendi um único raciocínio do indivíduo. Acho que a única excentricidade para a qual estávamos preparados era o facto dele saber os nossos nomes próprios e apelidos, tendo obviamente memorizado o livro do ponto antecipadamente - era como que a sua "marca". Mas era professor, não era? Estava ali para dar aulas, é assim ou não é? De facto, mas se por "dar aulas" entende-se chegar à sala, escrever 20 minutos ou meia-hora de matéria no quadro sem dizer uma única palavra, e tentar explicá-la com largos intervalos onde montava o grande circo do delírio, com risadas, provocações e insinuações tão ambíguas que nem ele nem sabia como lhes dar um fim, sim, dava "aulas". Fizemos dois testes no primeiro período, entregou ambos poucos dias antes das férias de Natal, e tudo o que nos dava a saber era a nota: "Satisfaz" ou "Não Satisfaz", com o particular de todas as zonas em branco da folha da prova estarem riscadas com uma esferográfica vermelha, em linhas direitas, desenhadas com uma régua. Foi a única vez que vi um professor salvaguardar-se de uma eventual "batota póstuma" dos alunos; que diabo, nem isso deve ter passado alguma vez pela cabeça de alguém. No fim desse trimeste fomos todos corridos com notas entre o 8 e o 11 (eu tive 9), e nós que tinhamos uma média global de 15/16 nas outras disciplinas. Não sei se isso fez a diferença, mas em Janeiro regressou ainda pior que antes, e era mais que evidente que tinhamos que agir, e com o apoio dos restantes professores encaminhámos um abaixo-assinado para o Conselho Pedagógico, e em menos de um nada estava suspenso por seis meses com guia passada para a junta médica, sendo substituído por uma professora que viria a colocar ordem no chinfrim que ele tinha deixado.
Se tiveram paciência para ler esta pequena "aventura" da adolescência leocardiana até este ponto, devem estar a pensar: "foste um dos que fez questão de lixar bem o homem, foi ou não foi?". De facto, e sabia de antemão que qualquer investida da sua parte ia receber uma resposta à altura (ou pior) da minha parte. Tentei passar despercebido o primeiro mês ou dois, mas sendo um dos quatro elementos masculinos que compunha uma turma de 22, era quase impossível evitar o confronto directo. Ainda ignorei uma ou duas investidas da sua parte, que só identifiquei como sendo para mim por incluírem o meu nome, e nem consegui entender duas palavras seguidas que fizessem sentido. Não obtendo de mim a reacção desejada, esquematizou um plano tão doentio que nem cabe em qualquer lógica racional, que consistia em realizar um teste-surpresa e atribuir-me a responsabilidade pela ideia. Foi tão elaborado que precisei de estalar os dedos para tirar os meus colegas de uma hipnose que quase os convencia da minha culpa - e nem mexi um dedo ou sequer abri a boca. Estava sem dúvida na presença de um génio do mal, de uma pessoa extremamente inteligente a quem partiram os ovos e deixaram uma omelete no lugar; era ele ou éramos nós, a repetir uma cadeira que era "canja". O mais curioso foi a facilidade com que realizámos a sua "purga", o que deu a entender que existia uma vontade, mas faltava um pretexto. O processo disciplinar foi uma mera formalidade, e a decisão foi acatada por ele com uma calma que não seria de esperar de um docente com 20 anos de experiência. No dia em que recebeu a nota de culpa e começou a cumprir a pena sentou-se no muro da escola, encostado às grades. Chovia copiosamente, e enquanto cobria a cabeça e o tronco com o guarda-chuva, deixava as pernas de fora, com as calças já completamente encharcadas. Passei ali perto, observeio-o ao longe e notei um olhar fechado e fixo, como de quem tinha sido traído, ultrajado, mas mesmo assim era impossível de levar a sério. Tive uma sensação estranha, de como quem tinha sido instrumentalizado, mas que ao mesmo tempo foi tudo tão claro e transparente que parece que aquela criatura foi enviada de outra dimensão para me testar: só a verdade, e apenas a verdade me poderia valer.
E acreditei nisto até aos dias de hoje, por incrível que pareça, e nem deu para ficar com um complexo de culpa: o tal professor não ficou muito prejudicado, pois pertencia ao quadro do Ministério da Educação, e no ano lectivo seguinte lá estava ele, no seu habitual traje de doido varrido, mas menos afoito - e não fui mais seu aluno. Quando olho para o caso de Bill Chou, não posso deixar de estabelecer um paralelo com tudo o que aconteceu entre o fim daquele ano de 1991 e início de 92, mas ao contrário. O ex-professor da UMAC contou ontem à imprensa que foi demitido por causa de duas cartas alegadamente anónimas que davam conta da utilização das instalações da universidade para levar a cabo as suas pretensões de activista. Tal como "crítica", a palavra "activismo" perde em Macau qualquer conotação positiva. Na edição local de um dicionário de Português, a existir uma, "activista" teria o sinónimo de "leproso". O actual vice-presidente da Associação do Novo Macau aponta o dedo ao reitor, ao director da Faculdade de Ciências Sociais e ao chefe do departamento de Governação e Administração Pública, que apesar da ascendência chinesa, têm "todos nacionalidade americana", fazendo por isso feito seguir uma queixa para um advogado em Washington. A UMAC justificou o afastamento de Bill Chou por ter usado "uma plataforma disponibilizada pela Universidade de Macau e o respeito e confiança dos seus alunos para prosseguir uma agenda política, estabelecendo um mecanismo específico de pontuação”, que incluía dar melhores notas a alunos que participassem em “actividades extremistas como greves de fome e manifestações” (?), tendo a denúncia partido de alunos do departamento de Governação e Administração Pública. Chou alega que apenas deu créditos extra a quem entregasse relatórios de trabalhos relacionados com as disciplinas que lecionava. Outro alvo do ex-docente é a directora da Escola Hou Kong, Chan Hong, que é também deputada da AL, e que o acusa de ter "distribuído propaganda", e imaginem só, "apelando a eleições justas" à porta daquele estabelecimento de ensino secundário, conhecido pela forte ligação ao continente. Chou defende-se dizendo que o fez apenas na condição de activista, e não de professor, e acusa a deputada eleita pelo sector da educação de não ter em conta o interesse dos educadores.
Agora o clímax deste filme: a Universidade de Macau acusa ainda Bill Chou de ter "dupla personalidade". Isto pode ter vários sentidos: desde o mero esgotamento nervoso ao mais complexo transtorno bipolar, mas em trocados quer dizer que o professor ficou subitamente "chalupa". O pouco que sei sobre Bill Chou é suficiente para me deixar intrigado, e a curiosidade que me levou a tentar saber mais fez-me destapar uma panela onde coze um guisado esquisito, que a julgar pelo cheiro deve ser intragável. "É de Hong Kong" - é a primeira coisa que me dizem, e isso deverá ter importância numa qualquer contabilidade indígena que desconheço. Começou a lecionar na UMAC em 2002, viajou pelo Brasil e pela India em 2008, casou em 2009 e ainda nesse mesmo ano lançou o seu primeiro livro,
"Government and Policy-Making Reform in China: The Implications of Governing Capacity", e o nome diz tudo: um ensaio elaborado sobre as reformas que a China necessita para enfrentar os novos desafios do século XXI, e na perspectiva feita a partir de 2009, os anos seguintes, ou seja, o tempo presente. Aparentemente Bill Chou é um teórico, um politólogo, que se dá a entender que estaria do lado do Governo Central - lá está, isto até podia ser o que ele pensava, vivendo na ilusão de que um sistema egocêntrico estaria interessado nas suas propostas de reforma. O caldo terá ficado entornado em 2011, ano em que também visitou em Portugal, e terá visto as suas propostas colocadas "na gaveta". O livro, que seria o último que escrevia, foi elogiado no continente, mesmo pela crítica do "The China Journal", mas nem tudo o que parece de facto é, e neste paralelo esse princípio é elevado à enésima potência - e isto é uma suposição, mas foi a partir desta altura que Bill Chao sofre uma metamorfose interessante.
Em Maio de 2012 o então ainda docente da UMAC aparece pela primeira vez ao lado do ANM (pelo menos oficialmente) numa acção de protesto
por um alegado acto de censura de que foi vítima pela TDM, posto isto diz ter sido colocado na lista negra daquela estação - típico, e só isto já terá sido o suficiente para que muitos olhos caissem sobre ele, e vigiassem todos os seus movimentos. Os problemas com a UMAC terão começado ainda antes disso, com uma das tais cartas a chegar em Abril, e poderá ter sido essa a razão da censura pela TDM. Em Outubro de 2012 organizou nas instalações da universidade um fórum político dedicado à juventude, que contou com a participação de Au Kam San e Teresa Vong, conhecidos membros da ANM. Esta é a única ocasião da qual consigo encontrar qualquer tipo de uso das instalações do antigo "campus" para "fins políticos" pela sua parte. Assumiu o activismo, participou dos protestos contra a construção do mercado nocturno dos Lagos Sai Van, provou o sabor da detenção pelas autoridades na manifestação do dia 20 de Dezembro, e durante 2013 esteve especialmente activo, e seja qual for a razão específica, foi também o ano em que a UMAC lhe decidiu passar a "guia de marcha". Em Maio participa na manifestação do Dia do Trabalhador, a tal que tornou célebre Kam Sut Leng, também ela professora, mas do ensino secundário, e também ela despedida mais tarde alegadamente pela participação no activismo. Bill Chao filiou-se em Novembro de 2013, foi suspenso seis meses depois, como mediatismo que se sabe, e após a nomeação como vice-presidente da ANM foi despedido, tendo sido uma das figuras de proa do referendo civil de finais de Agosto, o seu "baptismo de fogo".
Sobre as verdadeiras razões da saída de Bill Chou da UMAC só há uma certeza: têm a ver com a sua adesão súbita aos activistas do Novo Macau, e essa adesão deve-se a um "choque" que o tornaram um indesejável, após 10 anos como professor, onde passou discreto; alguém tinha ouvido falar dele até recentemente? Acho que até ao incidente da TDM era um virtual desconhecido, a não ser pela sua actividade académica, ou dentro dos meios da ciência política. Estranho como nunca se viu os seus colegas darem uma opinião que seja a seu respeito, e estranho ainda como a UMAC o dispensa num processo em que ele fica completamente "queimado", e se chega a sugerir que "perdeu o norte". O ANM, por seu lado, dá a entender que "para trabalhar ali não é preciso ser maluco, mas ajuda", e fizeram dele vice-presidente. De facto é um mistério, o que leva um professor, um homem culto, reservado e pacato a atar uma fita na cabeça e a pegar no megafone e ir ao encontro da polícia nesse desporto radical que é o activismo, aqui antónimo de "realismo" (conformismo?). Será ele louco por natureza, terá ficado louco com a idade ou é de tanto mexer na bactéria da política que ficou louco? Hmmm...conheço Eric Sautedé, e não me parece nada louco, portanto não deve ser isso. Li no Hoje Macau na semana passada que cerca de 200 funcionários públicos procuraram apoio psiquiátrico este ano; se calhar sentaram-se no mesmo sanitário, ou comeram na mesma loja de sopa de fitas. Fitas é que não faltam, nem portas que dêm a resposta à pergunta que urge fazer: o que se passa com o ensino superior em Macau, afinal? Nada! Está bem e recomenda-se, mas cuidado com isso do activismo, que não vale créditos e ainda vos pode fazer cair em descrédito. É tudo gente fina, estes académicos, e olhem que os que compõe este lindo ramalhete - reitores, directores, deputados e chefes de departamento - são uns meros peões de brega, porque acima...eh, eh...fecho o livro e faço um sorriso, um daqueles sorrisos de maníaco, como o meu professor fazia, como de quem viu o que ninguém quer ver. Não liguem, é só aquela lição que me ensinaram sem eu pedir, já lá vão vinte e tal anos, que me deixou com esta pequena loucura agarrada à pele. Depois passa.
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