domingo, 5 de outubro de 2014

Baby Doc foi ter com o papá



Em cima: "Papa Doc" e "Baby Doc" juntos; ao meio: "Baby Doc" e a sua mulher Michelle, em 1980; em baixo: um "baby" que de "baby" já pouco lhe restava.

Não é de propósito que estou a fazer hoje do blogue um obituário, mas prometo que a seguir tenho um "post" animador, outro divertido, e finalmente um sério, mas em jeito de reflexão e sem fazer referência a nenhum "de cujus", pelo menos no sentido material da expressão. Ninguém de carne e osso, portanto. Não podia no entanto deixar de assinalar o desaparecimento físico de Jean-Claude Duvalier, um dos personagens mais pitorescos do século XX e do contexto da Guerra Fria, que faleceu ontem aos 63 anos, vitimado por um ataque cardíaco. Um dos raros casos em que um "mau coração" não é cúmplice do "parceiro" que o leva na caixa toráxica.

Jean-Claude Duvalier era mais conhecido por "Baby Doc", isto porque assumiu em 1971, com apenas 19 anos, a "presidência vitalícia" do Haiti de seu pai, François Duvalier, conhecido por "Papa Doc" - assim se explica esta dicotomia do "papá" e do "bebé". Não há é Boca Doce para ninguém. O Haiti é a metade mais problemática da idílica ilha caribenha de Dominica. A outra metade chama-se Rep. Dominicana, bem conhecida certamente de muitos portugueses mais endinheirados (ou mais económicos) que procuram a linda estância de Punta Cana para passar férias, luas-de-mel ou outras ocasiões festivas. Do outro lado da ilha, a oeste, "festiva" é uma palavra que fica muito longe de descrever a vida dos seus habitantes.

O Haiti é o que se pode considerar um estado falhado, um bom exemplo daquilo que ouvimos chamar por "República das Bananas". O país tornou-se independente da França em 1825 mas nunca teve paz ou autonomia para lançar as bases para uma democracia sólida, ora pela influência dos mercadores de escravos e dos latifundiários brancos, ora devido às ameaças do vizinho do lado, a Rep. Dominicana. Em 1957 François Duvalier, médico formado pelo Universidade do Haiti, venceu as eleições graças a um discurso populista, dirigido à maioria negra do país e em oposição às minorias mulata e branca, que nem por acaso eram os detentores da maior parte da riqueza e das terras - onde um voto é um voto, esta é uma fórmula infalível.

Inicialmente era tido como um "salvador", Duvalier foi em 1959 vítima de uma tentativa de golpe de estado por parte de militares que lhe eram próximos. Assim, como acontece normalmente nestas situações, procurou considlidar o poder e "pifou-lhe um fusível". Criou uma milícia para-militar, a "Milice Volontaires de la Sécurité Nationale", conhecidos por "Tonton Macoutes" - para quem não sabe o "tonton macoute" é o nosso "bicho-papão". Nada apelativo, portanto. Esta milícia, como todas do género que se consideram acima da lei e como tal actuam, levava a cabo execuções sumárias, prisões arbitrárias, aterrorizava bairros inteiros, praticava extorsão, cometia violações, raptos, tortura, etc.,etc. e este "etc." aqui tem que se lhe diga. A certo ponto mais valia estar com os "Tonton Macoutes" do que ser deles vítima, e os "voluntários" tornaram-se tantos que a milícia se transformou num exército.

Em 1959, talvez devido ao excesso de insulina que tomava devido à diabetes "Papa Doc" teve um enfarte, e deixou Clément Barbot, líder dos "Macoutes" no poder enquanto convalescia. Regressado à presidência, acuusou Barbot de querer usurpar o poder e mandou-o prender. Este como achou que lhe servia mais o proveito do que a fama, tentou mesmo dar um golpe de estado quando saíu da prisão quatro anos depois, em 1963. Tentou com a ajuda do seu irmão raptar os filhos de Duvalier mas a sua tentativa sairia frustrada, sendo consequentemente perseguido e morto. Como todo o ditador "etnicamente diverso" que se preze, Duvalier tinha um parafuso a menos; dizia-se "mestre em vodu" e reclamou para si o mérito do assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy: foi "uma praga que lhe rogou". Era maluco mas não era burro, e na hora de fazer contas, desviava milhões de dólares em divisas públicas e ajuda internacional deixando o povo na mais profunda das misérias.

Nomeou-se "presidente vitalício" - afinal para quem já ganhou uma eleição quem precisa de dar mais provas? Só que o coração voltaria a trai-lo em 1971, e desta vez não lhe deu qualquer chance. Deixou um legado de qualquer coisa como 30 mil mortos, gente que ele considerava "conspiradores", "traidores" e "opositores". Era um homem adorado, portanto. "Baby Doc" assumiria o cargo de "presidente vitalício", herdando assim a "coroa" do pai, terminando assim o reinado de terror deste, e dando início ao seu reinado de terror. Não foi tão mau como o progenitor, chegando mesmo a libertar alguns presos políticos e abrandou a censura, mas foi igualmente mau. Levava um estilo de vida de "playboy", com vícios caros, e era dos cofres públicos que retirava o dinheiro para sustentá-los. Não sendo isto logicamente bem visto pela população e temendo que o derrubassem, manteve os "Macoutes" e por inerência a repressão e os atentados aos direitos humanos mais básicos pelos quais o seu pai se tinha celebrizado - esta era apenas uma versão mais esteticamente bem composta do mesmo mal.

Sendo que tinha apenas 19 anos quando assumiu a presidência, os haitianos começaram a pensar que teriam uns bons 50 ou 60 anos de cleptocracia pela frente (e de facto tiveram, e ainda têm), e em 1986 decidiram derrubá-lo, o que conseguiram com sucesso, partindo "Baby Doc" para o exílio em França. Ali viveu à grande e à francesa, literalmente, pelo menos até ao seu divórcio em 1993, que lhe custou grande parte do que restava da fortuna (leia-se "produto do roubo") e passou a viver uma vida mais ou menos modesta, e pasme-se, tinha apoiantes, quer em terras gaulesas, quer no próprio país. Não era para menos, pois a seguir a ele vieram outros larápios, mesmo que "democraticamente eleitos", casos de René Préval ou mais celebremente Jean Bertrand-Aristide, eleito presidente em quatro ocasiões distintas, e que nem o facto de ser um padre salesiano impediu-o de ser também bastante corrupto e cometer violações dos direitos humanos. Deve ser qualquer coisa que comem lá no Haiti que lhes faz mal e provoca isto.

Em 2011, 25 anos após o golpe que o derrubou, "Baby Doc" regressou ao seu país natal com o ar mais natural do mundo, aquilo em português escorreito e vernáculo designamos de "lata". Foi detido dois dias depois e acusado de corrupção, tortura e mais um sem número de crimes pelos quais nunca foi julgado devido a sucessivos adiamentos - claro que a "justiça" no Haiti é como todo o resto no Haiti. Sem nunca se voltar a envolver na política, viveu os seus últimos dias nos arredores de Port-au-Prince com a sua segunda mulher, rodeado de luxos, coisa que a esmagadora maioria dos haitianos não imagina sequer o que seja. Partiu ontem, e o mundo lembram-se de como há partes suas que por muito que tente lavar, não consegue lá chegar, e ficam sempre a cheirar mal. Já agora, tinha-me esquecido completamente que esta criatura existia quando ouvi a notícia da sua morte e na minha mente deu-se um "efeito dominó". Talvez porque prefira pensar que o Haiti não existe; é apenas faz-de-conta, como o bicho-papão, que lá chamam de "Tonton Macoute".

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