O Hoje Macau divulgou na segunda-feira os números do suicídio em Macau no primeiro trimestre do corrente ano – 33 casos, metade do total de 2012. Os 66 casos do ano passado significaram uma diminuição em relação aos 81 de 2011, mas ainda assim deixa o território com uma média de 11,3 suicídios por 100 mil habitantes, quando a média de 13 é considerada “elevada”. Com 33 suicídios registados no primeiro quartel, 2013 promete bater recordes. A não ser o período entre Janeiro e Março seja especialmente deprimente, ideal para se pôr termo à vida. Apesar das entidades governamentais considerarem estes números “normais”, eu digo que um suicídio que fosse por ano seria um suicídio acima do ideal.
Por vezes penso que em Macau se fala de suicídio como quem bebe um copo de água. Não duvido dos números apresentados, até porque em caso de erro, seria para menos, em nome do princípio fundamental da “harmonia”, mas existirá sem dúvida uma folga. Tinha um amigo que há uns anos se esqueceu das chaves em casa, e não querendo incomodar a mulher, que estava a trabalhar, subiu até ao terraço do seu edifício de quatro andares, e tentou entrar pela janela do ultimo piso, onde residia. Escorregou e caíu, sofrendo morte instantânea, e como se tratou de uma queda aparentemente da janela do seu apartamento, foi avançada a tese de suicídio. Porque haveria ele de se suicidar, se tinha acabado de ser pai há poucos meses e a vida lhe corria bem? Isto para não falar do lamentável caso do jovem português Luís Amorim, de triste memória para todoa a comunidade aqui residente.
Dá a entender que a tese de suicídio assenta que nem uma luva para explicar a morte de um indivíduo saudável, onde não existem indícios de violência ou de acidente. Pode ser que se feche um caso de polícia, mas para os familiares a explicação faz toda a diferença. O suicídio não afecta apenas a pessoa que o cometeu, e das 66 vítimas contabilizadas em 2012 existirão certamente familiares pesarosos que elevarão este número em algumas centenas. Um pai que enfrenta a angústia do suicídio de um filho sem que perceba a razão fica com uma dor que o acompanhará para toda a vida e poderá desenvolver mesmo complexos de culpa. É perigoso avançar com a teoria de que alguém se suicidou sem que se tenham certezas absolutas. Divulgar os números do suicídio não é a mesma coisa que divulgar os números dos animais abatidos no canil municipal.
A modalidade de “tentativa de suicídio” tem muito que se lhe diga. Fala-se aqui de “tentativa” como se nos estivessemos a referir às modalidades olímpicas de salto em altura ou de halterofilismo. Quem se quer suicidar além dos limites da ponderação e sabe como fazê-lo raramente falha. A taxa de sucesso é tão grande que uma “tentativa” quererá dizer que o indivíduo sobreviveu com a ajuda da sorte (e em muitos casos fica ferido com gravidade a até incapacitado), ou foi salvo a tempo, o que normalmente acontece nos casos de quem opta por um suicídio lento, como no caso da inalação de fumos tóxicos. Um tiro certeiro nas têmporas, a queda de uma edifício alto ou a ingestão de um poderoso pesticida costumam ser infalíveis. Saltar em frente a um comboio em andamento segundos antes que este passe significa uma “tentativa com sucesso”, a não ser que se dê algum milagre.
Muitas destas “tentativas de suicídio” são autoria de indivíduos problemáticos, cuja necessidade de chamar a atenção dos outros os leva a cometer a agredir-se a ele próprio ou ameaçar fazê-lo, mas sempre com a certeza que daí não resultam consequências que vão além do internamento hospitalar. Quem corta os pulsos e chama a ambulância ou fica encostado ao parapeito de uma varanda perante os olhares de centenas de curiosos e à espera que alguém o salve, não quer realmente morrer. Atirar-se para o chão, arrancar os cabelos ou bater com a cabeça na parede não são sintomas de uma tendência suicida. É apenas birra. Um indivíduo que pretenda chamar a atenção de familiares, amigos e sociedade em geral pendurando-se da janela de um 30º andar, escorregue e caia para a morte sem que isto fizesse parte dos seus planos não é suicídio. É morte acidental. Quem se quer realmente suicidar não publicita as suas intenções, pede que tenham pena dele ou procura negociar uma forma de mudar ideias. Mata-se e pronto.
Olhando para o motivo de suicídio que mais vítimas registou este ano – 12 dos 33, mais de um terço – encontramos a “depressão e a doença mental”. Aqui apercebemo-nos da forma amadora com que o problema é tratado, e relembra a necessidade de trazer para Macau profissionais da área da psiquiatria, bem como melhorar a qualidade dos serviços de acção social. A depressão é um problema que até recentemente era mais considerado um estado de espírito do que uma doença. Os estágios da depressão raramente se manifestam; não é uma doença de pele nem apresenta o mesmo quadro clinico de um ataque cardiaco. Quando se manifesta é normalmente tarde demais, e a vítima é deixada sem mecanismos de ajuda a que recorrer.
O que significa exactamente “doença mental”? Existe uma bitola que identifica como “doente mental” alguém que se comporta à margem do que é tolerado pela sociedade. Com a carneirada que por aqui temos, basta ser um pouco refilão para que se associe o descontamento à insanidade. Não sou médico e muito menos psiquiatra, mas o que entendo por “doente mental” implica alguém que tenha problemas de integração nas mais básicas funções sociais, inapto para o desempenho das tarefas mais simples. Mesmo que este tipo de indivíduo tenha tendência para ser marginalizado e institucionalizado, onde vai buscar o engenho para cometer suicídio e obter sucesso à primeira tentativa, mesmo não estando habilitado a apertar um parafuso. Era bom que se especificasse que “doença mental” é esta exactamente, e que não se limitem a insinuar que entre os números do suicídio se encontrem os que o fizeram porque são apenas “maluquinhos”.
Das outras razões que levam a que se ponha termo à própria vida, existem as mais difíceis de evitar: a doença e os desgostos sentimentais. Nestes últimos encontramos os problemas amorosos e familiares, que muitas vezes levam ao despespero, e basta uma decisão impensada para levar à tragédia, que poderia muito bem ser evitada com um pouco de moderação e tino. A questão da doença, especialmente a crónica e dolorosa, podia levar-nos a uma discussão sobre a eutanásia, um tema que em Macau ainda não viu sequer as sementes serem lançadas, quanto mais considerá-la como uma forma de aliviar o sofrimento. Chamem-lhe suicídio ou apenas uma saída airosa, a opção de terminar com a dor é deixada ao critério de cada um.
O que nos pode levar a uma discussão mais elaborada são os motivos que nos últimos anos mais vítimas têm registado nos somatório: o jogo e o desemprego. Não quero parecer um disco riscado, mas enquanto os problemas com o jogo levaram a sete suicídios no primeiro trimestre deste ano, não encontro um único relacionado com a droga. O primeiro gera receitas, o segundo mata. E o contrário também é verdade, dependendo da perspectiva. A questão do desemprego, que penso estar inserido em parte ou na totalidade dos “problemas familiares”, causa-me alguma estranheza. Num território ultra-subsidiado como Macau, onde desemprego não é sinónimo de pobreza e a empregabilidade é elevada, que razão leva alguém a perder o emprego e decidir terminar com a vida? Terá mais a ver com o como do que com o quê, e numa cidade cada vez mais virada para dentro de si, os neo-tecnocratas ditam as regras, e os que não se adaptam caem borda forda. Suicidam-se, ou são suicidados.
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