segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O país que gritou lobo


Muitos devem estar familiarizados com a fábula do “rapaz que gritava lobo”, que nos ensina uma lição de vida bem válida. Um jovem muito traquinas gostava de deixar a sua aldeia em estado de alerta anunciando um lobo que acabava de sair da floresta. Os homens da aldeia saíam de casa armados até aos dentes, só para mais tarde descobrir que o rapazola lhes mentira, e ficava rindo do que considerava ser uma divertida bricadeira, que repetiu um bom par de vezes. Cansados de ser enganados, os aldeões deixaram de acreditar no rapaz, até ao dia em que o lobo veio mesmo, e devorou-o, de nada valendo os seus apelos ao auxílio da comunidade que tanto se divertiu a ludibriar pelo medo. Este conto lembra-nos da importância da honestidade e da credibilidade necessárias para que seja possível contar com a solidariedade alheia em caso de aflição. Ensina-nos sobretudo que existem limites para a bondade, e que ninguém gosta de dar o melhor de si em vão, por alguém que não merece o tempo e o esforço dispensados.

Tudo isto a propósito de uma notícia que li na edição de hoje do Jornal Tribuna de Macau, que dava conta da protecção legal que o município de Shenzhen, na China, vai dar a quem não se recuse a fazer uma boa acção, e não hesite socorrer alguém que se encontre em dificuldades. Mas esperem lá, isto fora de contexto não faz muito sentido. Porque haveria alguém de se recusar a socorrer outro em caso de necessidade? E porque precisa de protecção? Será este mais um daqueles casos bizarros em que tantas vezes a China é fértil em nos brindar nos noticiários? Sim, é, de facto, e infelizmente não é dos mais engraçados. É tão triste que dá pena.
A China dos dias de hoje vem-se tornando cada vez mais uma sociedade tão apegada ao dinheiro, ao lucro fácil e a qualquer custo, que se arrisca a ficar cada vez mais desumanizada, com cada um por si e Deus por todos, sob o lema do “salve-se quem puder”.

Muitos burlões a outros oportunistas fingem encontrar-se necessitados de auxílio, e assim que um estranho oferece ajuda, acusam-no da autoria dos maus tratos que os deixaram com as mazelas que apresentavam antes da chegada do bom samaritano. A vítima faz assim uma vítima, e quem se disponibilizou a ajudar, pensando estar a fazer o que é humanamente exigido a cada um, percebe que caíu no conto do vigário. Em alguns dos casos o burlão encontra-se mesmo necessitado de ajuda, mas nem por isso deixa de aproveitar a oportunidade para atribuir a culpa do seu estado a quem se prestou a ajudá-lo. Doentio, é o mínimo que se pode dizer. Muitas das vezes as disputas são resolvidas em tribunal, e não são raros os casos em que o burlão convence os juízes. Isto leva-me a questionar a eficácia da justiça chinesa, ou neste caso a falta dela. Que mensagem é esta que estão a passar? Que o crime afinal compensa?

A nossa mentalidade de ocidentais leva-nos a nunca recusar dar a mão a quem precisa, sob pena de ficarmos com um peso na consciência. Mesmo quando a situação representa perigo e não se recomenda uma interferência directa, como num assalto ou numa rixa violenta, há pelo menos quem se digne a chamar as autoridades. Na China os mais bem intencionados cidadãos começam a virar as costas a quem encarecidamente lhes pede ajuda, ou a quem está visivelmente correndo perigo. O melhor é cada um tratar da sua vida e evitar dissabores, e no fim ainda passar por ingénuo. Quem sofre com este desprezo são aqueles que necessitam genuinamente de uma mão caridosa, que em muitos casos pode representar a diferença entre a vida e a morte. Tudo porque outros menos escrupulosos gritaram “lobo” tantas vezes que os aldeões deixaram de acreditar na vinda da fera, mesmo que esta esteja a devorar a vítima mesmo à frente dos seus olhos.

O clima de suspeição que leva a tanto egoismo produziu notícias chocantes num passado recente. Há dois anos um estudante universitário atingiu uma camponesa com o seu carro, deixando-a ferida na estrada. Em vez de a transportar para o hospital mais próximo, tirou uma faca do porta-luvas e matou-a, sendo mais tarde julgado e condenado à morte. Na eventualidade de a ter morto com o impacto do carro, bastaria pagar as despesas do funeral e nada mais. Deixando-a viva poderia ficar sujeito a anos de extorsão, com a vítima a alegar incapacidade e um sem número de outros problemas derivados do acidente, nem que para isso fosse necessário produzir relatórios médicos falsificados. Em alguns casos um motociclo que toque de raspão na perna de um peão pode ser o suficiente para que este “esprema” o autor da “grave ofensa física” bem além dos limites do razoável.

Para compôr este vergonhoso ramalhete falta mencionar os profissionais de saúde, se bem que chamá-los de “profissionais” é um insulto aos profissionais de verdade. Quando se chama uma ambulância em caso de acidente, os paramédicos exigem que os seus serviços sejam pagos antecipadamente, caso contrário recusam-se a assistir o sinistrado. Um acidentado que esteja inconsciente e a esvair-se em sangue fica dependente de alguém que peça socorro e se disponibilize a suportar as despesas, normalmente bem caras, por sinal. É lógico que poucos se dispõem a entrar com o dinheiro, que dificilmente lhes será devolvido, e viram a cara, como se não fosse nada. Mas que raio de médicos são estes que se recusam a socorrer uma vida humana sem que antes sejam pagos por um serviço que deviam prestar sem hesitações de espécie alguma? Se a China é um país “comunista”, como se explica este tipo de comportamento que nem o mais voraz dos capitalismos toleraria? E o povo pá? E assim o lobo vai engordando à custa de aldeões inocentes, perante o olhar indiferente dos restantes, que por causa do rapaz que antes lhes mentira, se recusam a acreditar no predador.

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