quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O Homem Invisível


É durante estes dias em que chove quase todo o dia, com mais ou menos intensidade, que me sinto como se fosse o Homem Invisível. E quero dizer invisível mesmo, sem recorrer à gabardina, ligaduras, chapéu e óculos escuros que façam notar a minha presença sem denunciar o meu segredo. Sou invisível mesmo sendo de carne e osso, e se o maior cego é aquele que não quer ver, mais invisível alguém se torna aos olhos de quem ignora por completo a sua presença. Se consigo pensar em inúmeras vantagens que poderia tirar do poder da invisibilidade, não me lembro de nenhuma do facto de ser perfeitamente visível e ninguém dar por isso.

Já estou cansado de referir neste espaço a falta de civismo de alguns residentes e da maior parte dos turistas, que se acham no direito de circular por Macau como se o resto da humanidade que partilha com eles a via pública fosse obrigada a sair da frente. Nem sei mais se o problema tem a ver com os maus modos, ou se é apenas algum tipo de deficiência neurológica e motora que os impede de reconhecer a presença de outro ser humano num raio de dois metros à sua volta, e os leva a agir como se estivessem a atravessar sozinhos o Grande Canyon. Estes tipos e tipas são como aquele amigo com que partilhamos a tenda num acampamento, e na hora de dormir acha-se no direito de abrir os braços e esticar as pernas, nem que seja à custa de nos obrigar a dormir ao relento, ou remetidos a um canto com as fuças encostadas na lona. Sim, uma daquelas situações que nos faz desejar que a justa causa para cometer homicídio fosse mais abrangente.

Se andar pelos pontos mais concorridos de Macau quando faz bom tempo nos obriga a evitar andar aos encontrões com os gajos que olham para todo o lado menos para a frente quando andam, os que vão entretidos a mandar mensagens no telemóvel ou os que esperam que o mundo inteiro fique em “stand-by” enquanto demoram um minuto para tirar uma fotografia do melhor ângulo, pior fica quando chove. É aí que se cometem os maiores actos de selvajaria, evidenciando uma das piores facetas da natureza humana: o egoísmo. Quando chega a hora de se manter sequinho e não apanhar chuvinha, não vão os meninos ficar constipadinhos, coitadinhos, é um salve-se quem puder. Pouco importa que muitos passem o dia encharcados em suor e com a roupa colada ao corpo com o sebo das suas carcaças, mas chuva é que não senhor, isso é que era bom. Se o ditado popular diz que “quem anda à chuva molha-se”, a filosofia destas criaturas é “quem anda à chuva e molha-se é parvo”.

A arma do energúmeno que se acobarda com a mínima chuvinha, como se tivesse alergia à água, é o guarda-chuva, que ostenta como se de uma carapaça de tartaruga se tratasse. Está debaixo do guarda-chuva como quem está em casa, e considera uma violação da privacidade se o repreendem por estar a ocupar o dobro do espaço normalmente reservado a cada cidadão que anda pela rua. Nem se preocupa se está a incomodar o vizinho do lado, a esfregar-lhe o pano molhado do objecto na tromba, ou prestes a arrancar-lhe um olho com a ponta de uma vareta, pois tem uma desculpa que nunca falha: está a chover! Eu próprio detesto usar o guarda-chuva; se estiver a chover bem não evita que fiquemos molhados na mesma, especialmente da cintura para baixo, e é um enfado andar com uma das mãos ocupadas a levar aquela porra para toda a parte. Caso esteja a chover de manhã cedo e faça sol durante o resto do dia, andamos com aquilo na rua a fazer figura de urso. Deviam inventar guarda-chuvas descartáveis, que pudessem ser deitados fora depois de usar uma vez.

Nunca abro o guarda-chuva se a chuva não o justifica, e não me importo de ficar salpicado com uns pinguinhos, que neste clima quente e húmido até servem para refrescar as ideas. Mas há gente que nem pensar, ai Jesus que fico molhado e isso é que não, que horror, e toca a abrir o guarda-chuva mal cai uma gota do céu, mesmo que seja a única. O pior é quando se esquecem do resto da humanidade e abrem o chapéu onde muito bem lhes apetece, sem verificar se vai alguém a passar à sua frente. Alguns saem dos edifícios ou das lojas de guarda-chuva em riste como uma lança, e abrem-no ainda antes de meter os pés no passeio, não vá uma gotinha cair na moleirinha dos bebés. Quando vão fechá-lo inclinam-no subitamente para a frente como um escudo, ficando sem a percepção se está outra pessoa à sua frente. Se atingem alguém que os repreende ficam a olhar estupefactos para “aquela pessoa tão malcriada” que por acaso acabaram de agredir, em vez de pedirem desculpa, o que seria o mínimo que podiam fazer. E porque haveriam de se desculpar? Afinal está a chover!

Sempre que a chuva me apanha desprevenido procuro molhar-me o menos possível, apresso o passo e procuro andar encostado aos edifícios, circulando debaixo de qualquer cobertura que encontre pelo caminho. Mesmo assim é complicado não me molhar, caso esteja a chover com intensidade, e para piorar as coisas deparo sempre com outros que tiveram a mesma ideia que eu, mas fazem-no com o guarda-chuva aberto! Meus amigos, para quê, se debaixo das varandas não chove? Têm medo que vos caia uma em cima da cabeça? Já sei que têm um guarda-chuva e eu não, parabéns, mas se querem andar com ele aberto, vão para o meio da chuva. Será que é preciso que os guarda-chuvas venham com um manual de instruções ou um “disclaimer” onde se leia: “usar apenas debaixo da chuva”?

Os passeios são estreitíssimos, e é impossível passar com o guarda-chuva aberto entre a parede e um poste de iluminação ou um sinal de trânsito. O mais cómico é quando nessas circunstâncias se cruzam duas pessoas em direcções opostas. Ficam a olhar um para o outro, para ver quem sai da frente passando para a estrada e metendo o pé numa poça, ou no caso de estarem carros estacionados que não os permitam desviar-se (o que acontece quase sempre), passam os dois esticadinhos esforçando-se por não se esfregarem um no outro de forma homoerótica (caso sejam dois homens, claro), fazendo um malabarismo suplementar para fazer passar os guarda-chuvas sem que estes fiquem presos um no outro. Já cheguei a ficar cara-a-cara com um tipo que me fitou com os olhos muito abertos, como quem diz “e agora!?” E agora? Sai mas é da minha frente que não tenho o dia todo, e não és nenhuma beleza para que eu perca tempo a ficar aqui especado a olhar para o teu focinho, pá! Alguém devia elaborar um código que estabelecesse regras, que definisse prioridades e tudo mais, como no trânsito. Só com boas intenções torna-se complicado.

E por falar em trânsito, este fica caótico sempre que chove. Os domingueiros que normalmente evitam conduzir para que ninguém se aperçeba da sua azelhice resolvem tirar o carro da garagem, causando filas de trânsito a perder de vista, mas onde nunca falta um ou outro espertalhão que insiste em apitar. Deve ser para ver se a buzina faz o veículo levitar e assim consigam sair daquele impasse. O que não entendo muito bem é a indelicadeza de alguns condutores, que não respeitam a passadeira para os peões, e chegam mesmo a acelarar para passar antes de algum mais atrevido. Até aceito que os motociclos o façam, pois afinal molham-se ainda mais cada vez que param – só no compreendo é que insistam em sair de mota mesmo quando está a chover a potes, mas enfim. Agora para os carros, qual é a desculpa? Têm medo que a chuvinha risque o pópó, é, meninos?

Não há pachorra para aturar quem sai à chuva e se acha no direito de pensar primeiro em si, depois nele, e finalmente na sua pessoa. É chato passar o dia inteiro com a roupa molhada, que a juntar ao ar-condicionado dos centros comerciais e edifícios públicos, sempre ligados no máximos, arriscam a que se apanhe uma gripe, o que é sempre desagradável. Mas neste particular deve prevalecer sempre o velho princípio: não faças aos outros o que não gostas que te façam. Mas isto é apenas a minha opinião pessoal. Certamente que algumas das pessoas que referi têm a sua versão própria do conflito em que nos envolvemos por alguns instantes. Mas quero lá saber. Se voltarem a atravessar o meu caminho e me agredirem com a merda do guarda-chuva, arranco-o das mãos, fecho-o, enfio-lhes no respective e abro-o novamente. Para que aprendam.

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