quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Crónica de um tufão anunciado (e muito mais)


Passavam poucos minutos da oito da manhã deste dia de tufão quando saí de casa a pé em direcção ao NAPE. Tinham passado três horas desde que foi içado o sinal 8, mas depois de uma noite de chuva torrencial o céu estava claro, o vento soprava ameno e a precipitação diluviana tinha dado lugar a meros chuviscos. Menos de cinco minutos depois do início da minha jornada deixou mesmo de haver necessidade de manter o guarda-chuva aberto. É interessante circular por Macau num dia de tufão. É um diferente, especial, mais ou menos como o dia das eleições para a Assembleia Legislativa: é perigoso andar na rua, impossível encontrar um taxi e damos de caras com muita gente confusa e perdida. E de facto encontrei muita gente a quem um dia de tufão é como outro dia qualquer: um dia de trabalho. Nem todos têm a sorte de estar empregados na Administração, nos Bancos ou outros sectores onde perder uma manhã de trabalho não faz grande diferença. Mas já lá vamos.

Os poucos taxis que ia encontrando circulavam devagar com a placa de “fora de serviço” bem visível, em busca dos habituais tansos que não se importam de pagar 200 patacas ou mais por uma corrida que normalmente ficaria por 30 ou 40. Em frente ao Clube Militar assisti a uma destas negociações, mas aparentemente o casal que mandou parar o carro preto desconhecia esta modalidade de roubalheira típica dos dias especiais, e algo desapontados, resolveram desistir. É um facto que os taxis não estão cobertos pelo seguro em caso de tufão, e que a única alternativa aos preços criminosos praticados pelos taxistas é dar corda aos sapatinhos e ir a pé. Mas se de facto correm maior risco optando por praticar a sua vilanagem nestas condições, o melhor mesmo era que ficassem em casa. Se acontecer qualquer incidente desagradável, vão andar de mãozinha estendida a choramingar, ai ai coitadinho de mim que tenho bocas para sustentar. E depois ninguém tem pena.

Muito do comércio nem chega a abrir as portas, e muitas das lojas ainda abertas àquela hora vão encerrando à medida que a tempestade se vai aproximando. Alguns supermercados e mercearias optam por se manter abertas, e no caso destas últimas os proprietários aproveitam o facto de residir num espaço anexo ao seu negócio para facturar uns trocados com algum freguês mais distraído que queira remediar a despensa vazia com umas massas instantâneas, umas bolachas ou umas bebidas, ou com algum vizinho a quem tenham acabado os cigarros. As lojas situadas junto dos hotéis e dos locais mais frequentados pelos turistas aproveitam para inflacionar os preços, aplicando-lhes uma “taxa de tufão”, mas graças a essa grande invenção que foi o 7-11, podemos mandá-los ir tomar nas respectivas peidolas. Só entre o Instituto Politécnico e o Hotel Holiday Inn encontrei pelo menos três daquelas lojas de conveniência, que permanecem abertas 24 horas por dia, quer haja tufão, seja dia de Natal ou mesmo no evento de Guerra termonuclear. Nunca fecham, o que me leva a questionar qual a utilidade de terem um portão.

E agora a pergunta que se impõe: o que estava este vosso mais que tudo a fazer na rua àquela hora e com este tempo, à revelia das recomendações da Protecção Civil no sentido de permanecer em casa? Boa pergunta, e a resposta é uma excelente oportunidade para dissertar sobre alguns aspectos que vão além do tufão, dos taxis ou dos supermercados. Acontece que a minha companheira, que se inclui no grupo de pessoas sem a mesma sorte que eu e muitos dos leitores que referi no primeiro parágrafo, pediu-me encarecidamente que a acompanhasse até ao hotel-casino onde inicia o seu turno às 9 da matina. Com tufão ou sem tufão, com vento ou sem ele, a pé, de patins ou de avioneta, que apareça lá à hora combinada e fique descansada que pelo menos ali está protegida do mau tempo. Algumas empresas providenciam transporte que vá buscar os trabalhadores a um local próximo da sua residência, mas a maioria diz-lhes que se desamerdem. Se têm medo que algum objecto levado pelo vento os atinga na cabeça, levem um capacete. Não têm um? Comprem.

O tufão obriga alguns hotéis a trabalho suplementar, pois os hóspedes ficam impedidos de sair enquanto está içado o sinal 8. Para unidades hoteleiras com casino é uma maravilha, pois pode ser que alguns turistas se aborreçam e dêm lá um saltinho e mais tarde voltem para casa com os bolsos aliviados. A necessidade de mão-de-obra extra leva a que alguns trabalhadores que terminaram o turno à meia-noite de ontem começem um novo às seis da manhã – apenas seis horas depois, e sem direito a qualquer compensação. Mas a generosidade dos casineiros é infinita, e os que vivem na Taipa e trabalham em Macau e vice-versa são “convidados” a pernoitar num dormitório improvisado, não vá a ponte servir de desculpa faltar ao trabalho. O “convite” é irrecusável, tal é forma como é feito: “querem dormir cá ou preferem ficar aqui a dormir?”. Um dilema, sem dúvida.

E ainda há quem se questione mui indignado o porquê da contratação de cada vez mais trabalhadores não-residentes para o sector da hotelaria e do entretenimento, enquanto a malta de cá não tem emprego e outra verborreia desse tipo. É lógico que apenas os trabalhadores não-residentes se sujeitam a esta ginástica que implica dormir meia dúzia de horas e ir trabalhar apesar do tufão. As suas famílias que aguardam pacientemente que lhes mandem dinheiro todos os meses caso contrário passam fome são uma razão mais que suficiente para dobrar a espinha e engolir a seco quando lhes pedem mais do que aquilo que está estipulado no seu contrato. As míseras quatro ou cinco mil patacas que auferem sem direito a gorjetas, que são obrigados a entregar à entidade patronal, sempre são mais quatro ou cinco mil patacas do que auferiam no seu país de origem. Se parece um roubo que ganhem tão pouco para um horário de 50 horas semanais com quatro dias de folga por mês e onze dias de férias anuais sem direito ao respectivo subsídio, o desemprego é a tempo inteiro e paga zero patacas e zero avos. Folgas e férias é que não faltam, dependendo da perspectiva.

Os residentes com que os críticos da contratação de mão-de-obra estrangeira tanto se preocupam mandavam logo os hotéis e os casinos à fava. Cinco mil patacas? Por semana, só pode ser. Trabalhar com tufão? Uma simples dor de barriga ou uma unha encravada já são razão mais que suficiente para ficar em casa. E quem disse que precisam de levar para casa o desaforo daqueles “tai-loks” que as indonésias e as filipinas tratam com tanta simpatia? Se os chateiam muito nunca mais lá põe os pés, e depois toca a ir fazer queixinhas à tal malta que defende os seus interesses, que não conseguem um emprego por causa dos malvados dos não-residentes, e ‘bora lá fazer pressão junto do Governo para mandar essa malta estrangeira embora. Coitados dos moços, que foram obrigados a nascer e a viver aqui toda a sua vida para ter um BIR. É uma injustiça.

Mas no se zanguem, que os tipos dos casinos até não fazem por mal. Tudo o que eles querem é simplesmente alguém que trabalhe mesmo a sério e faça funcionar o seu negócio em condições, garantindo-lhes lucros milionários. E no fim se tiverem juizinho ainda levam os trocados de que dependem as suas famílias indígenas lá no terceiro mundo. Sabem o que são cinco mil patacas na Indonésia, Filipinas ou Vietname? É mais do que ganha o presidente da República! Isto não é escaravatura, nem exploração, nem sequer chantagem da mais baixa e reles. É apenas sugestão, um poder apenas ao alcance dos que dominam a hipnose. É só fazer perguntar “Querem trabalhar mais três horas por dia todos os dias este mês em troca de uma mão cheia de amendoins?”, enquanto se segura num bloco de notas e numa caneta para apontar o nome dos que quiserem recusar esta magnífica oferta. E eles respondem “Claro, é uma honra e um prazer”. E pronto, ninguém é obrigado a nada, e vivem todos felizes para sempre.

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