domingo, 14 de setembro de 2014

Estamos fritos



Tenho-me abstido de comentar a questão do óleo falsificado de Taiwan por uma série de razões que me levam a pensar: porque é me deu para falar disso agora? Já sei, o problema não é tanto o óleo em si mas a segurança alimentar em geral, uma daquelas coisas em que o segundo sistema ganha nos pontos ao primeiro, e sempre que uma destas coisas acontece lá ficamos nós a pensar: "estamos cada vez mais parecidos com a China". Ainda por cima o tal óleo é importado de Taiwan, onde por uma razão qualquer que desconheço alguém assumiu que 1) os habitantes da ilha nacionalista não são chineses; 2) não existem comerciantes desonestos em Taiwan e 3) os estabelecimentos de restauração, padarias e afins em Macau preferem zelar pela qualidade dos seus produtos e pela saúde do consumidor do que ter lucro - até por duas patacas de diferença trocam um óleo "normal" por um destilado de uma retrete pública.

Existem dois tipos de comerciantes: os que querem lucro e ainda têm o mínimo de consideração pelo consumidor, e os que querem lucro e estão-se nas tintas se o tipo que comeu no seu restaurante ou comprou o pão na sua padaria se desfaz todo num ataque de desinteria. E depois o lucro é uma coisa lixada, é um bocado como as drogas duras - quantos mais se prova, mais se deseja. O tipo que está a fazer mais dinheiro a cada mês que passa não vai um dia acordar e pensar: "já chega de enriquecer, chegou a hora de retribuir para a sociedade que tanto me deu e investir mais na qualidade dos meus produtos". Errado, seu ingénuos! Acreditais naquelas campanhas infantis do CCAC que falam de "sociedades íntegras" e "futuros brilhantes"? Mesmo aqueles que se orgulham da qualidade do seu produto, certificado acima de qualquer suspeita, têm sempre a tendência para cobrar muito mais que outros que só pensam em cumprir as encomendas ou encher as prateleiras.

Não é segredo nenhum, nem é de hoje que as padarias, muitos dos restaurantes, tascas ou lojas de recordações usam óleo de qualidade inferior para confecionar os seus produtos. Existe na Rua do Tarrafeiro, onde eu vivi até recentemente, uma fábrica de óleo de banha de porco, onde as partes adiposas do suíno são literalmente expremidas, produzindo um líquido que em contacto com ingredientes crus conferem-lhe uma textura, sabor e aparência ideiais para meter neles um preço e vendê-los. Se passarem por lá num dia quente sem chuva cheira a torresmos e tudo, e eles não têm mãos a medir com as encomendas. Mas pronto, um porco é um porco, está identificado, mas pior é quando o óleo é extraído de resíduos industriais, como no caso deste escândalo alimentar em Taiwan, ou pior ainda na China, que chegou a ser destilado de água do esgoto. Claro que entre o merdume existirão quantidades respeitáveis de óleo alimentar, vindo dos milhões de lava-loiças, e para quem tem poucos escrúpulos, na falta de qualquer coisa que sirva para dar fritura aos alimentos, até o acne do filho adolescente serve.

O que me deixou baralhado foi o "pânico" desta população que é normalmente tão serena neste aspecto. Desde que aqui cheguei assisto à forma despreocupada com os locais compram as frituras daqueles vendedores ambulantes que cozinham tudo no mesmo óleo, conhecido pelos locais por "óleo de 10 mil anos" (萬年油), devido ao facto de quase nunca ser trocado. Dizem que assim é "mais delicioso", pois no óleo ficam entranhados os sabores de gerações inteiras de lulas, sementeiras sortidas de pimentos, cardumes diferenciados de peixes feitos em massa (mais as cabeças, tripas e espinhas, enfim), tudo apurado ao ponto da poli-saturação, o suficiente para iniciar a gestação de um tumor ao fim de alguns meses de consumo regular. Num "post" muito semelhante a este, dedicado ao mesmo tema e publicado neste blogue em Junho do ano passado contei a história de um estudante que se desentendeu com um desses vendedores e atirou para dentro da frigideira uma bosta de cão que encontrou no chão, e o tipo limitou-se a retirar o excremento e continuou a usar o óleo. Não há critério para isto do "sabor", pois se alguém se queixa de um restaurante onde a cozinha é visivelmente imunda, chega a haver quem diga que "é esse o segredo" do sabor dos pratos e do sucesso do estabelecimento - quantas mais polegadas de bedum no balcão da cozinha, mais delicioso.

Não existindo aqui em Macau uma autoridade como a ASAE (se existisse 90% dos estabelecimentos fechavam as portas) comer fora é um pouco como jogar roleta-russa. Não são assim tão raros os casos de intoxicação alimentar em hotéis, restaurantes de "yum-cha", mesmo os mais conceituados, e naqueles em que não é possível "abafar", chegam a ir parar ao hospital excursões inteiras da China continental. Inspecção? Haver há (aquele verbo português que aqui deixámos, chuif, que orgulho), mas esteja ela debaixo da alçada do IACM ou de outro departamento qualquer, não há garantias de transparência, e pode ser que o tipo que aceite 500 patacas para fechar os olhos a um rato a passear-se em cima do arroz vá comer à confiança num restaurante mais caro onde um colega aceitou 1000 para fingir que não viu uma situação semelhante. Portanto completamente seguro é impossível, a não ser em casa, e mesmo nesse caso evite comprar um óleo de uma marca completamente desconhecida e estupidamente mais barato que os restantes. Pode ser que neste mundo ainda exista gente generosa, mas não tão generosa assim, e certamente poucas neste negócio.

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