sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Cachorrada



Na edição de quinta-feira do Hoje Macau, Loi Man Keong traça um retrato nada positivo da Administração Pública na RAEM, dando destaque ao facto de existir cada vez mais sobreposição de funções e excesso de departamentos. Vinda esta opinião de alguém que faz parte do Conselho Consultivo da Reforma para a Administração Pública, só pode ser verdade - e é grave, também. É lógico que estando numa posição crítica, o também vice-presidente do Centro de Política Colectiva nunca poderia fazer nada sozinho, mesmo que tenha a solução, ou o princípio da solução em mãos. E para dizer a verdade, todos têm a sua opinião muito própria sobre a forma de gerir uma empresa, ou no caso dos mais humildes pelo menos uma sugestão, mas o problema é sempre o mesmo: se eu tenho razão, porque é que sempre alguém que discorda? Deve ser essa coisa nova que chama "pluralidade", ou diferença de opiniões. Na Administração, este "pluralidade", ou diversidade, é ampliada à enésima potência, e entre os que têm umas ideias que se aproveitam mas falam para as paredes e os completamente alienados que sabe-se lá como são ouvidos (e "mandam") há um pouco de tudo, e infelizmente mais do último exemplo do que do primeiro.

Para se falar da Administração com conhecimento de causa é preciso estar dentro da Administração, ou ter lá estado alguns anos. As comparações com o tempo dos portugueses, até 1999, seriam inevitáveis, caso não fossem fúteis: é verdade que inicialmente se tentou mudar alguma coisa, melhorar a eficácia, investir em equipamento, renovar quadros, implementar novas ideias, eliminar alguns vícios antigos. Terá sido apenas uma forma que encontraram de mostrar serviço, de se apresentar com um grande potencial de competência, mas desde logo no lugar dos antigos vícios apareceram novos, e os velhos regressariam com uma nova roupagem. Uma das maiores críticas feitas à anterior administração tinha sido o excesso de funcionários e de departamentos, o que era entendido como uma forma dos portugueses acomodarem familiares e amigos - não há que negar, aconteceu, de facto. Depois de 2000 a situação não só se manteve como piorou radicalmente, e se antes as coisas eram feitas mais discretamente, pois era difícil ir pesquisar a origem de alguém que chegava ao território oriundo de um local que ficava a milhares de quilómetros de distância. Agora chega-se ao ponto de apresentar um novo funcionário como o marido/filho/namorada/amiga de alguém do mesmo departamento ou de outro da mesma direcção. Realisticamente, em Macau, as únicas perspectivas de carreira estão nos casinos e na administração, e para quem não se acha talhado para a primeira e tem "cunha", a segunda é opção, e se há falta de vagas abre-se mais uma, e onde comem 337 bem podem comer 519.

A Administração que tomou posse após a transferência de soberania inovou, em certos aspectos, funcionou bem na maioria dos casos, e depois acomodou-se, estagnou, e agora só à custa de arrancá-la do sítio é que se pode esperar algo de novo e positivo - é como uma cárie. O principal problema reside na própria cultura local, a chinesa, e sem querer desfazer dessa particularidade, existem dois defeitos com influência na funcionalidade em geral, além do já referido acomodamento, há o medo de assumir responsabilidades, e ambos advêm do mesmo conceito: o da "face". Não é preciso vir um Loi Man Keong para nos dizer que algo está mal, e que o exemplo parte logo de cima. Ninguém imaginava com toda a certeza que ao fim de 15 anos de RAEM teríamos três dos cinco secretários com que se iniciou o percurso a 20 de Dezembro de 1999. O problema aqui é que sendo este cargo apenas excedido pelo do Chefe do Executivo, e qualquer mudança implicaria necessariamente ou aposentação do titular do cargo, a sua despromoção, ou algo pior - dos dois restantes secretários um foi para Chefe do Executivo e o outro é Ao Man Leong, e aí está o exemplo do melhor e do pior dos mundos. Torna-se impossível assim implementar a medida da rotatividade ou da alternância de poderes, pois qualquer saída, mesmo que bem intencionada, será sempre tomada como um sinal de fraqueza por parte de quem é substituído, ou um saneamento. Caso a saída aconteça por motivos alheios ao dirigente, arranja-se um lugar num cargo equivalente, mesmo que as funções sejam completamente díspares das anteriores, e se necessário "inventa-se" um departamento - não supreendente portanto que a máquina administrativa esteja tão "gorda".

Permanecer demasiado tempo num cargo de chefia tem as suas implicações em matéria de gestão dos recursos, tanto materiais, como humanos. Nesta área do globo tão propensa a consolidações do poder a receios de perder esse poder, usam-se e abusam-se de "manobras de distração": estabelece-se um sistema de delação, promovem-se não-oficialmente um ou dois "testas de ferro", mantêm-se os mais competentes (afinal o trabalho precisa de ser feito de algum jeito) e dá-se-lhes algumas regalias ao mesmo tempo que se lhes mostra preferência por outros menos úteis, segue-se de perto que tem iniciativa, apresenta sugestões ou questiona ordens directas, e mal este erre, multiplica-se o erro por 200 na escala da gravidade, faz-se uma cara de caso e diz-se que o tipo "pôs em risco o funcionamento da repartição" e fica logo posto de parte. Qualquer ousadia depende bastante do vínculo laboral, e mesmo que se pense que os funcionários do quadro têm mais margem de manobra, nem isso é definitivo, tal é a profundidade a que o carbúnculo penetrou no sistema. Para manter este estado de coma basta recorrer à classificação de serviço, aos bónus por desempenho, e basicamente é como pescar peixe num barril, uma vez que os recursos hierárquicos são um desperdício de tempo, e possivelmente um dos poucos casos de "trabalho de equipa" digno desse nome - não por uma questão de cooperação, mas mais de mutualismo forçado: hoje limpo a tua barra porque pode ser que amanhã tu limpes a minha.

O medo de errar leva a que não se faça, ou que se evite fazer mais do que o minimamente essencial, e isto tem uma razão de ser. Um exemplo prático: dois funcionários que respondem a ofícios, e ao fim do dia um deles respondeu a dois ofícios, e sem cometer qualquer erro, enquanto o outro respondeu a dez, mas num deles existe uma falha qualquer, mesmo sem importância, uma gralha ou uma mera omissão. O primeiro é considerado "exemplar", o outro "distraído", e cai logo nele um "olho gordo", fica marcado. Se no dia seguinte o "exemplar" vai no terceiro ofício, e o outro, exercendo cautelas redobradas, ainda está a fazer o segundo, perguntam-lhe a razão do atraso. Usemos o mesmo exemplo mas alargado: existe um terceiro funcionário, que no mesmo dia fez também dois ofícios, e certos, tal como o seu colega "exemplar". Assim passam estes a ser exemplares e ainda consideram "justiça poética" que o outro tenha errado, pois estava a "engraxar", ou como ainda é mais comum pensar-se, "a lixar os colegas". Errar deixou de ser humano, pois e todos têm medo de cometer uma falha que todos os outros aproveitem para apontar e assim serem considerados "responsáveis e diligentes". Isto porque quem erra "faz de propósito", e quer "prejudicar a chefia", que depois caso o erro seja grave "terá que assumir" - que não só não assumiria como ainda encontraria um bode expiatório para os seus próprios erros, claro.

Existe uma "teoria do caos" muito curiosa para fomentar o medo de errar. Digamos que na imaginária Direcção da Lavagem dos Utensílios de Cozinha (DLUC, pode ser que criem qualquer coisa semelhante para acomodar Raymond Tam) alguém parte um copo, entre os milhares que lá estão. Eleva-se aquilo para algo quase criminoso, uma desgraça, e se o tipo que partiu o copo se atreve a dizer "é apenas um copo", leva como resposta "e se toda a gente partir também um copo!?!?". Ora aí está, o melhor mesmo é meter na cadeia aquele perigosíssimo sabotador do parte-copos, não vá alguém pensar que "não faz mal" partir um copo, e desatarem ao mesmo tempo a atirá-los ao chão, numa sinfonia de vidro partido em cacos. E talvez seja por esta importância que se dá aos copos (não querem que depois as pessoas bebam com a boca encostada à garrafa ou ao pacote, pois não?) que se cria a ideia de que um funcionário é funcionário antes de ser cidadão, ou seja, em tudo o que faz na sua vida privada, terá que ter em conta que representa a administração, e se partir um copo em casa, no bar ou num café, é como se tivesse partido um copo lá na DLUC. Agora se na DLUC chateam-lhe os cornos ao ponto de em casa partir os dentes ou a cabeça à esposa, já que nem um copo lhe é dado a partir para aliviar a pressão, então aí "problema seu", mas só até enquanto a violência doméstica não for crime público, pois nesse caso é o equivalente a ter partido uma cristaleira completa lá na DLUC.

Mas não se pense que são infelizes, os rapazes e as raparigas lá na DLUC; vão para lá todos contentes da vida, e sabem muito bem que nada lhes acontece se não partirem nenhum copo, e no caso nesse dia só tenham talheres de alumínio ou recipientes de plástico para lavar, até o fazem cantando e rindo, mas sempre levando aquilo muito a sério, como se fosse neuro-cirurgia. Portanto quando alguém partir, ou sequer rachar ou lascar um copo, toca a denunciá-lo, pois isso é "trabalho de equipa". E por aqui equipa entende-se "equipas", pois existem dois ou mais grupos que por alguma razão que a certo pontos esquecem completamente porquê, odeiam-se umas às outras. Assim temos a equipa A, sempre conotada com um quadro médio que tem boas relações com a chefia, e a equipa B, "same same but different". Quem não de uma ou de outra equipa, pode sempre fazer de agente duplo, aquilo que os alemães chamam "hurensohn". Os que optarem por não querer nada com essa "cachorrada" são suspeitos, e 1) estão contra todos e têm uma agenda oculta para conquistar o universo, ou 2) são problemáticos, metem-se na droga, frequentam antros de prostituição, ou pior que isso, atrevem-se a considerar o trabalho da DLUC cagativo, e ousam colocar-se em primeiro lugar como cidadãos. Ultraje dos ultrajes, recusar-se a ser Judas mesmo-ali-à-mão. Quem pensa ele que é para pedir apenas que não o chateiem? Toca já a meter uns copos de vidro fino mesmo à beira do lava-loiça do gajo.

Acho piada quando oiço alguns dirigentes (e não só) falarem de meritocracia. Essa deve ser a palavra do ano para aqueles parasitas que se auto-intitulam "formadores", que no fundo vão debitar conversa de chacha a tipos que abanam a cabeça dizendo que sim a tudo o que ele diz mas têm as suas prioridades, e estão-se nas tintas para o que ele estiver para ali a ladrar. Não que ele se importe muito com isso, desde que lhe paguem pelo verbotim, e no fim da aula termina dizendo "meritocracia!", e riem todos à gargalhada. O que vigora é uma filhadaputacracia, ou em alemão, "hurensohnkraten". Não sei se o tal Loi Man Keong é um dos tais tipos que têm o conhecimento "in libro" das coisas, ou se está só a falar por falar, mas colocando tudo isto nos pratos da balança, pode-se dizer que não se fazem omeletes não porque não há ovos, mas porque não há galinhas, e portanto é melhor deixar os ovos em paz que pelo menos sempre se pode dizer que os há. Um trabalho que podia, devia ter começado a ser feito há anos era o de educar no sentido de se perceber que os funcionários da administração trabalham para uma figura colectiva abstracta: o Governo. Nem as chefias têm esta mentalidade, e comportam-se como donos da loja, nem os funcionários, que nem se atrevem a pensar alto em tamanho desaforo, quase um crime de lesa-majestade. Mas "relax, guy", os ovos estão lá não estão? A porta abre às nove e fecha às seis nos dias úteis, é ou não é? E o nosso maioral foi lá acima dizer que está tudo bem não foi? Então descontrai-te, meu, e cuidado com os copos.

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