Foi um fim de semana a ferro e fogo em Hong Kong, com confrontos em várias zonas do centro da RAEHK. De um lado dos protestos estava o movimento Occupy Central, que assim entrou efectivamente em marcha sete meses depois de ter anunciado os seus planos de ocupar o centro financeiro de Hong Kong; mais de um milhar de activistas pernoitaram em Causeway Bay, deitados na estrada, e outros 3000 bloquearam os acessos a Mong Kong, chegando alguns deles a erguer barricadas. De outro lado estavam os estudantes, que iniciaram no dia 22 um boicote as aulas que já anunciaram que vão continuar pelo menos mais esta semana. O conhecido estudante e activista Joshua Wong foi detido durante 40 horas sem acusacao formada e eventualmente libertado ontem pelas 22 horas após ordem do Tribunal Supremo da RAEHK. Dois membros do LEGCO, Emily Lau e Albert Ho estiveram também sob custódia da policia, que fez um total de 78 detenções, além de se terem contado 38 feridos depois das autoridades terem recorrido ao uso da força, com bastões e gás lacrimogenio. As autoridades justificaram o uso da força pelo facto de "a manifestação não ter sido autorizada, os manifestantes levarem conduta desordeira, entrando sem autorização em espaços comerciais e edifícios públicos, molestando funcionários e impedindo a polícia de fazer o seu trabalho". Numa altura em que se fala em greve geral, o Chefe do Executivo C.Y. Leung veio desmentir rumores de uma eventual intervenção do Exército de Libertação Popular, por ordem do Governo Central. É possível que Pequim não queira intervir agora, mas não significa que não o possa fazer mais tarde. Seja como for, a razão pela qual a situação não ficou ainda resolvida nada tem a ver com o sufrágio universal, e ainda menos com a insolência dos manifestantes. Desde quando é que "evitar um banho de sangue" foi preocupação para Pequim? Além disso, já que o mundo inteiro está de olhos na situação em Hong Kong e o presidente de Taiwan veio dizer que "não lhe interessa o segundo sistema" (nunca interessou realmente, mas agora é uma boa altura para vir dizê-lo), mais um banho de sangue ou menos um tanto faz.
Eu gostava de tomar aqui um partido, mas infelizmente não posso. De um lado temos o governo da RAEHK, que fez promessas que sabia de antemão que nao podia cumprir e com isso tudo o que conseguiu foi algum tempo, e do outro lado o sector democrata, cujo extremar de posições os leva agora a entrar num braço-de-ferro que nunca poderá ganhar. Mas estes são dois adversarios que lutam a beira de um precipício, tentando empurrar o outro ou pelo menos cair com ele, caso tenha que cair. Antes de elaborar mais a esse respeito, ha três pontos que gostaria de deixar bem claros:
Primeiro:
desobediência civil é um crime, não é nenhuma brincadeira ou a forma ideal de demonstrar descontentamento - longe disso. Este conceito de desobediência civil foi primeiro definido pelo escritor norte-americano Henry David Thoreau, que era abolicionista, e como tal propôs esta "resistência a um governo civil" como medida para esse fim, ou seja, a libertação dos escravos. O seu ensaio a esse respeito inspirou outros como Gandhi, na luta pela criacção e soberania de um estado indiano, ou ainda Martin Luther King e Nelson Mandela nas suas lutas contra o fim da segregação racial nos EUA e na África do Sul. Pesem agora isto na balança com as reivindicações dos activistas em Hong Kong e ponderem se tal coisa se justifica. É que caso a desobediencia civil fosse prática corrente, tolerada e não reprimida exemplarmente e assim desencorajada viviamos na anarquia total, e cada vez que um grupo de três ou quatro individuos tivessem uma exigência qualquer podiam ir ao extremo de cometer actos que colocavam em risco todos os outros. Primeiro ponto.
Segundo: os agentes da autoridade, ou a polícia, são pessoas como nós, e com toda a certeza preferiam ficar em casa ou cumprir o turno a multar os donos dos cachorros que deixam os cocós no parque do que a carregar sobre as outras pessoas com bastões e gás lacrimogenio. Atenção que nao estou a dizer com isto que aprovo a actuação da polícia de Hong Kong nestes dois dias, pois nunca poderia aprovar o uso de meios violentos sobre pessoas desarmadas, mas lembrem-se que estavam a cumprir ordens, e não me venham agora dizer que "deviam desobedecer" também. Quem me tem seguido desde o início, desde o anterior blogue "Leocardo", deve recordar-se da foto reportagem que fiz da manifestação do 1 de Maio de 2007, de triste memória. Estive na altura no "olho do furacão" e assisti da parte das autoridades a um excesso de zelo que não se justificava de todo. Eram pouco mais de 1500, se tanto, os manifestantes que passaram da Av. Tamagnini Barbosa até ao Mercado Vermelho na altura em que o tal agente disparou os cinco tiros para o ar, a uns dez metros do local onde eu me encontrava, e ao contrário do que a polícia revelou (ou daquilo que estava a espera) os provocadores que supostamente se tinham infiltrado na manifestação nao eram tantos assim, e estavam a "guardar-se" para a chegada do grupo ao Patane, o que como se sabe nunca viria a acontecer. Na altura andei a responder durante semanas na secção de comentarios aos apologistas do "porrada nos gajos que e o que eles merecem". Se isto aqui foi assim, imaginem estes dias em Hong Kong, e imaginem-se ainda no lugar das pessoas que se encontravam nos edifícios que os manifestantes tomaram de assalto. Certamente que no momento em que eles começassem a partir tudo o que encontrassem pela frente não iam querer que os polícias lhes pedissem para parar com modos, pois não? Segundo ponto.
Terceiro: Paralisar o centro financeiro de Hong Kong tem implicações nos mercados, e significa a perda de avultadas somas de capital de que a RAEHK precisa como ar para respirar, uma vez que ali não há petróleo nem casinos. Depois isto levara inevitavelmente à perda de confiança dos investidores, ao encerramento de empresas, à perda de milhares de postos de trabalho, e há mesmo pessoas que antecipando um cenário menos dantesco já falam em emigrar. Já tinha deixado
neste post de 2 de Julho último a minha opinião sobre o que considero ter sido uma grande falta do Governo Central, ao ter deixado a execução do principio "um pais, dois sistemas" nas mãos de pessoas que não entendiam nada de política. Sendo esta uma empreitada sobretudo política, foi um erro deixar no mesmo ringue dirigentes sem tacto e uma oposição experiente, bem organizada e com um segundo sistema que lhes permite "esticar" até onde quiserem enquanto que na China não lhes era dada sequer a ponta da corda. Mas a pergunta que se impõe e esta: estas pessoas querem o bem de Hong Kong? Será mesmo necessário arruinar financeiramente o território em nome de uma exigência que sabem de antemão ser difícil de ver atendida, pois a China e um regime totalitário e eles
são parte integrante do seu território, e estão perfeitamente conscientes disso? E é com esta interrogação que fecho o terceiro ponto e sigo para o essencial.
É perfeitamente legítimo, recomendável em termos de futuro até, ambicionar a uma maior abertura democrática por parte da China, mas se Pequim se mostra tantas vezes relutante a grandes progressos nesse sentido, tem as suas razões. Fica difícil acreditar que tiram algum gozo da forma quase obsessiva como controlam ou querem controlar tudo, ou como desconfiam daquilo que aparenta ser inofensivo. O que está aqui em jogo é o próprio poder, que na China, muito por culpa da sua dimensão, heterogeneidade e dispersão populacional, a juntar uma massiva população migrante que acaba por se tornar impossivel de controlar. Nos últimos cem anos o poder esteve primeiro nas mãos dos nacionalistas, a seguir os comunistas tomaram-no e a partir de então inverteram-se os papés, e o partido único sabe disso muito bem: o inimigo nao lhes fez uma vénia ao retirar-se do combate. Mao teve a visão para "fechar para balanço" e assim arrumar a casa, consolidando o poder do partido e já agora o seu próprio poder, só que veio a concentrar-se de tal forma neste último que deixou os outros dois inacabados aquando da sua morte. O país tinha ficado num estado lastimoso depois de Mao, e ao seu sucessor Deng Xiaoping não restou senão uma fuga para para a frente, pegando nas migalhas que o seu antecessor deixou, ou seja, os contactos com o presidente norte-americano Nixon, e apostou na abertura económica, usando sobretudo o seu potencial humano como chamariz para chamar as potências ocidentais a investir.
E tudo corria bem nos primeiros anos, com a meta dos oito pontos percentuais de crescimento por ano da economia a serem cumpridos e ultrapassados, e ainda como estímulo negociava com sucesso o retorno de Hong Kong e Macau à mãe pátria. Com a economia a crescer e o orgulho nacional em alta, poucos esperavam pelo duro golpe que se daria em 1989, com o massacre de Tiananmen. O movimento estudantil que ocupou durante dois meses o centro de Pequim não era um produto do acaso: eram "eles", e muitas devem ter sido as noites em que o fantasma de Mao perturbava o sono de Deng repetindo incessantemente: "eu avisei, eu tinha razão". Posso estar apenas a dar um colorido extra ao conto, mas a verdade é que para travar o avanço do movimento Deng virou-se para os alunos de Mao, a ala conservadora do partido, fechou os reformadores na dispensa e foi sentir o pulso ao exército. A prioridade era que o regime não caísse, e depois da "cosmética" Deng tentaria encontrar um jeito de minimizar os danos, pois já era tarde para voltar atrás e fechar novamente a China para tentar arrancar as ervas daninhas. Deng teve sucesso em convencer os seus homólogos estrangeiros que provavelmente aquela foi a solução menos má para todos. No entanto tinha ficado o aviso, e Tiananmen foi como que um "cartão amarelo", passando a referência daquilo que a China não pode fazer caso queira continuar a jogar ao lado das grandes potências, e de quando em vez o "inimigo" aproveita para provocar, e espera um momento de fraqueza para atacar.
E é isso que está a acontecer hoje; vinte e cinco anos depois o local não e Tiananmen em Pequim mas Central District em Hong Kong e o mobil não é a politica mas sim a economia. Há 25 anos o momento de fraqueza foi a queda da cortina de ferro, que culminou com o fim do bloco socialista do leste europeu, e agora podem ser vários motivos, desde as disputas internas no partido aos sucessivos escândalos de corrupção que envolveram altos dirigentes do partido, e que levaram o presidente Xi Jingping a iniciar uma campanha de combate a esse flagelo que começava a desacreditar o partido. Só que isto deixou-o entre a espada e a parede, pois se por um lado agrada ao povo ver serem aplicados castigos a corruptos que em alguns casos tinham fortunas surrealistas, alguns deles com verdadeiras grutas de Ali Babá em casa, por outro lado isto deixou muita gente irritada; é que por cada cem milhões de yuan que um destes dirigentes recebe, há outro tanto que é distribuído por intermediários, às vezes centenas deles. Quando Bo Xilai foi detido, Xi Jinping não arranjou apenas um inimigo, mas muitos opositores. Seja qual for a causa pela qual o regime abanou (e ainda abana), a verdade é que tem estado bastante reservado, discreto, não exercendo a habitual dureza que exercia em certas situações - anda "à coca".
Quanto aos "outros", eles estão aí, e isso é uma das poucas certezas, e o que querem é o poder. É possível que entre eles existam pessoas com ideiais democráticos válidos, mas sejamos realistas: na China nunca poderia funcionar um sistema multipartidário; num país onde um ajuntamento de mais de cinco pessoas é considerado ilegal, uma vez que fosse dada essa liberdade apareciam milhões de partidos, e para que se desenvolva uma consciência política do nada demora décadas - quando os americanos apregoam que a China devia ter uma democracia parlamentar representativa só podem estar a gozar. Faz parte do topo da lista do livro "como irritar a China". Além do mais ninguém ia andar atrás do poder tantos anos para depois prestar-se a dividi-lo voluntariamente, ainda mais tratando-se da China, onde nunca na sua história jamais alguém em circunstância alguma aceitou dividir o poder. Actualmente o Partido Comunista e a sua influência estão tão enraízados que a queda do regime implicaria certamente tudo de diferente do que há agora, e isso abre uma caixa de Pandora com consequências imprevisíveis, mas que com toda a certeza levaria a anos de crise e indefinação, e isso não seria bom nem para a China, nem para Hong Kong, nem para nós, em Macau. E é nesta corda bamba em forma de rastilho de dinamite que vamos fazendo equilibrismo.
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