Era na solidão do seu estúdio que passava o dia o escritor, sentado ao canto, absorto nos pensamentos, na alquimia das palavras, aquela era a sua zona de conforto. Passavam as horas, os dias, as semanas e os meses, e os meses já se traduziam em anos, e tudo o que ele precisava era a solitude e a inspiração. A segunda só podia advir da primeira; queria ficara sozinho, não era só. Desde pequeno queria ser um escritor, um Camus ou um Sartre, ou um guionista como Woody Allen. Lia um pouco de tudo, desde os clássicos aos românticos, aborrecia-o a poesia, talvez devido aos constrangimentos da métrica, mas abria excepções para Baudelaire e James Joyce. Gostava de romances, de tragédias, como tinha sido também em parte a sua vida, não se entusiasmava com aventuras, algo muito ficcionado, e ficava desapontado quando lhe ofereciam livros de capa e espada ou mistérios policiais, que ele considerava "literatura preguiçosa". O primeiro livro que leu foi a Bíblia, e pronto, estava lido, e a partir daí pode-se partir em qualquer direcção. Adorava os franceses, além dos referidos Camus e Sartre encantava-o Jean Cocteau, depois de ter começado com Saint-Exupéry, que lhe desenvolveu o lado sensível. Dos restantes lia Tolstoy, Orwell, Kundera, entre outros, da literatura em português preferia Jorge Amado, tinha 13 anos quando leu "O Capital", de Marx, "por curiosidade".
Fascinava-o o som da máquina de escrever, mais do que à estética da pena, com quem imaginava Eça a escrever "Os Maias", mas arrepiava-se com as gravuras dos copistas da Idade Média. Na primária foi com a classe visitar uma esquadra de polícia, e enquanto os colegas se entretiam a ver as fardas, os coldres e armas, ou se entretinham à volta das viaturas, pediam para subir e sentar-se nos motociclos, ou tocavam as sirenes, ele ficava pela secretaria a observar o pessoal administrativo, que lá lhe deixavam brincar um pouco, e escrever uma linha ou duas - sempre qualquer coisa da sua autoria. Se ia com os pais visitar amigos destes ou outros familiares, e ali havia máquina de escrever, era ali que se sentava desde que iam embora, e ainda pedia para ficar mais tempo. No 10º aniversário ofereceram-lhe a sua primeira máquina de escrever, que cuidava religiosamente, ao mesmo tempo que lhe dava frequente uso - até para fazer os trabalhos da escola, algo que nem todos os seus professores permitiam. Nunca conseguiu acabar um livro "antes dos 18 anos", como se tinha comprometido a fazer consigo próprio. Depois vieram os estudos a sério, o curso, o estágio, o emprego. Namorou, casou, teve um filho, restava-lhe menos tempo para escrever: foi viver a vida.
E viveu, aprendeu, errou mais do que acertou, veio o divórcio, pensou em voltar à sua paixão de miúdo, a escrita. Primeiro a solidão, finalmente a solitude - é a mesma coisa, só que mais poético: era só, não solitário. A tecnologia levou a que não precisasse mais da velhinha máquina de escrever, apesar de ter saudades do seu teclar. O mundo trouxe-lhe uma caixa onde podia aprender sobre coisas que antes lhe custariam uma tarde na biblioteca. Ficou a saber as notícias antes do Telejornal, algumas que nem no Telejornal ele via. Foi preciso separar o trigo do joio, era demasiada informação, contra-informação, decepção, truques baixos de "marketing", gente que enganava outra gente, porque sim, era uma caixa com gente lá dentro. Achava aquilo fascinante enquanto foi novidade mas depois passou a fazer parte do jogo, mesmo que não arriscasse muito. Escrevia nas horas livres, já tinha dois ou três livros completos, algumas notas soltas, tudo que tentava publicar, mesmo sendo difícil e dispendioso. Se tinha algo mais ambicioso chegava a levar para o emprego e retocava durante a hora de almoço. Atrás da tal caixa que o ligava o mundo, produzia mais, mas sentia que não era a mesma coisa, ter acesso àquilo que todos têm igualmente acesso. Pensou como seria se Júlio Verne fosse hoje vivo, como seria para o homem que um dia descreveu as padarias do Norte da América como ninguém, e sem nunca ter lá estado ter toda esta panóplia audiovisual à sua mão. Se calhar seria como todos nós, ou talvez um "blogger" acima da média. O facilitismo é inimigo da imaginação.
Um dia do outro lado apareceu alguém, assim como muitos alguéns que aparecem a outros alguéns, às vezes por bem, infelizmente mais vezes por mal, outras ainda com um fim trágico - porque é que às vezes as pessoas se querem conhecer para depois se odiarem? A culpa não é do mundo virtual, mas das próprias, que começam a perder o bom hábito de conhecer outras pessoas, e mais importante do que isso, respeitá-las. Não é um ecrã que está ali, mas uma criatura de carne e osso. O escritor trocava impressões com ela, achavam-se interessantes, começaram então a falar da intimidade, a partilhar segredos. Ela perguntava-lhe se ele não queria ir ver o sol, ele que só escrevia sobre o sol. E foram dia, debaixo do sol, outro debaixo da lua, ver o mar, as estrelas, conviver, ouvir música, dizer segredos, e trocaram beijos. E acabou, sem se saber bem como, acabou sem sequer ter começado. Foi tudo descartável, como aquelas notícias que circulam na rede e nem chegam a ter honras de Telejornal. O escritor ficou sem saber porquê, ou como, sentiu-se usado. Não usado como o narrador de "Le Renégat", de Camus, ou como Le Chevalier de Mirval, da obra do bom Marquês. Foi usado-usado, como um fósforo, um palito, um guardanapo. Sem entender que lição foi esta, o escritor voltou ao canto do seu estúdio para regressar à sua função, mas parecia tudo diferente, agora. A outrora zona de conforto parecia agora uma gruta fria e húmida. Era o mesmo canto, do mesmo estúdio, da mesma casa na mesma cidade. Era a mesma masmorra de sempre.
Leocardo, 10/09/2014 (hora da masmorra)
Sem comentários:
Enviar um comentário