Semana cansativa, em que finalmente assumo que o Bairro do Oriente é tudo o que me resta, e se amanhã desvanecesse, era algo que poderia perdurar durante algum tempo como o meu resto, tirando o esqueleto (o meu, e isto é se não fosse cremado). Nesta nota que parece deprimente, mas longe disso, deixo-vos com o
artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Continuem a olhar as estrelas, meus gafanhotos.
O Estado proíbe ao indivíduo a prática de actos ilícitos não porque deseje aboli-los, mas sim porque quer monopolizá-los. Sigmund Freud
Imaginem este cenário: quinze ou dezasseis agentes da autoridade formam uma barreira para impedir a passagem a mais de mil manifestantes, e para esta suposição pouco importa se a manifestação é ou não autorizada, se seria inicialmente pacífica ou se houve número imprevisto de participantes. Sem canhões de água, gás pimenta ou outros meios de que pudessem dispôr de imediato, e nem para a chegada de reforços há tempo: é preciso agir. Os manifestantes estão furiosos, fazem pressão sobre os agentes, e está-se prestes a chegar a um ponto crítico. O que decide a polícia? Numa situação normal, num país, estado, cidade normais, noutro lugar qualquer, é possível que o chefe da polícia chamasse o homem ou os homens que ali o mandaram que viessem dialogar com as pessoas, e assim tentar resolver a situação pacificamente. Em Macau acredito que os polícias iam ao choque, numa manobra “kamikaze”, tentando impedir o maior número possível de manifestantes de ultrapassar o cordão policial.
Se tenho esta impressão, é porque os nossos governantes fazem-me pensar que decidiriam assim – se não fossem outros a fazê-lo por eles, como tantas vezes dá a sensação que acontece – a ordem seria “antes quebrar que torcer”. Quando por vezes satirizo a prof. Agnes Lam, da UMAC, que persiste “ad nauseum” no discurso de que “o governo precisa criar canais de comunicação com a população”, não estou a sugerir que ela está errada, mas apenas que é redundante que venha a público dizer o que toda a gente sabe, vê e sente: existe um distanciamento entre o topo e o meio da pirâmide, enquanto o fundo se vai aproximando cada vez mais do meio – ou o meio do fundo, dependendo do optimismo de cada um, da velha dialéctica do “copo meio cheio ou copo meio vazio”.
As elites acomodam-se, criando em seu redor uma redoma de silêncio, onde para chegar se passa por um intricando labirinto habitado por emissários seus, que apaziguam os que ali andam perdidos garantindo que “fazem chegar a sua voz” ao topo, algo que já deu para perceber que não passa de nada mais que “paninhos quentes”. As elites governam, ou pelo menos deviam governar, e ao contrário de uma ditadura ou “autocracia” se preferem esse eufemismo, não actuam. Podiam actuar mal, ou resolver mal, que sempre é melhor que não actuar de todo ou não resolver nada, passam a imagem da indiferença, que os leva a tratar apenas do que lhes interessa a si e aos seus próximos, tentando ao mesmo tempo convencer todo o resto de que a governação é uma tarefa “complicada”, e que fazer política em Macau é como atravessar um campo minado, e o melhor é deixá-los tratar dessa questão tão “sensível”, e quanto menos falarmos, duvidarmos ou questionarmos, melhor para todos.
E com isto desencoraja-se o protesto: fiquem aí quietinhos e deixem-nos tomar conta do essencial, e não se atrevam a certas “espertezas” que possam baixar drasticamente o vosso índice de empregabilidade. Quem se organiza contra a inércia para obter as respostas que muitos procuram – os activistas, as associações não alinhadas com o sistema ou as vozes dissonantes – são inevitavelmente “destabilizadores”, com uma “agenda oculta”, e se for preciso insinuar que estão “ao serviço de uma potência estrangeira”, que seja, e há sempre quem acredite. Se fosse mesmo assim, então seria por culpa destes “rebeldes” que o acesso à habitação própria é quase uma utopia, que a qualidade de vida diminui a olhos vistos, e tratar uma simples gripe no hospital público implica ter que perder um dia inteiro, ou é ainda por culpa deles que a tão apregoada diversificação económica nunca passou do papel, ou sequer das intenções, e basta a China moderar a política dos vistos individuais para que soe o alarme, e aqueles que agora investem não hesitem em desinvestir. Macau é óptimo para fazer grandes negócios, sim senhor, e para quem não é convidado para a “festa”, como é? Essa “pastilha” da “harmonia” que querem impôr é mais larga que a traqueia, e nem chega a passar pela faringe.
Pode parecer fora de contexto, mas olhemos para o caso recente dos tais “folhetos pornográficos”, que subitamente passaram de um acessório mais “kitsch” dessa instalação mais vasta que é a indústria do jogo, a um passe-social para crimes como o lenocínio ou o tráfico de pessoas com alguma droga à mistura – os “folhetos” são agora vistos como um bilhete para um espectáculo de sexo, drogas e “rock’n’roll”, mas sem “rock’n’roll”. Quando fui consultar a tal lei que regula a venda, exposição e exibição de material pornográfico, na parte que constitui ilícito criminal lê-se que “é proibido afixar ou expor em montras, paredes ou em outros lugares públicos, pôr à venda ou vender, exibir, emitir ou por outra forma dar publicidade a cartazes, anúncios, avisos, programas, manuscritos…” e a este ponto juro que pensei que ia encontrar ali um “etcetera”, e qual Arquimedes que acaba de entrar na banheira de uma qualquer sauna da Casinolândia de Macau exclamei “eureka!”, e aí estava a solução para muitas das dores de cabeça que afligem os nossos dedicados governantes, e que lhes poderia : etcetera.
Incluir esta fórmula mágica, o etcetera, em muita da legislação mais ambígua, desde a os regulamentos municipais, passando pela lei dos dados pessoais a terminando até no Código Penal, se necessário, seria “tiro e queda”. Bastaria um etcetera, ou simplesmente etc., e determinada situação incómoda para o Governo que não está legalmente prevista e portanto não é ilegal, passa a ser, bastando atirar-lhe com o etcetera em. No caso do etcetera vir a ter um efeito perverso e ser usado contra a nomenclatura, vêm os tribunais “interpretar”, que no dicionário local quer também dizer “subverter” ou “perverter”, e emite-se um despacho onde conste que “os residentes de Macau não têm direito ao etcetera”. Para os casos mais complicados, pode-se recorrer aos serviços de um médium, que assim invoca o “espírito da lei” e deixa de ser necessário que jovens supostamente inteligentes e com um largo futuro pela frente na área do Direito ou outros com um conhecimento e uma experiência vasta na matéria se prestem a certas tristes figuras. Confiar no nosso Governo é um pouco como tentar agradar a uma amante exigente: ela não nos diz que etceteras gosta – nós é que somos obrigados a saber.
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