segunda-feira, 3 de junho de 2013

Comer é morrer um pouco


Os hábitos alimentares da população de Macau não estarão entre os mais saudáveis do mundo, e isto é uma realidade facilmente verificável a olho nu. Basta olhar para a oferta em termos de restauração e os estabelecimentos mais concorridos para perceber que a preferência do consumidor local obedece a critérios mais mundanos, como o sabor ou a quantidade, e não tanto com os efeitos nocivos que a sua dieta poderá provocar a longo prazo. Quem goza de plena saúde não estará tão preocupado com a eventualidade de ficar doente daqui a cinco, dez ou vinte anos, e o presente pede uma tigela de massa cozida com bolas de carne e peixe carregadinha de monoglutimatos e com algum picante, já agora. É escusado falar dos efeitos nocivos do açucar ou mencionar a experiência que diluiu a casca de um ovo que ficou mergulhado um mês em Coca-Cola. Ora, nós não somos um ovo!

Basta olhar para o aspecto de alguns dos nossos residentes, mesmo os mais jovens, para nos apercebermos que o conceito de pirâmide alimentar não colhe. São borbulhas, pele oleosa, obesidade, cáries dentárias, e outros sinais de uma alimentação desregrada onde imperam os requintes da cozinha cantonense, rica em gorduras saturadas, alto teor de sódio e comida processada com uma forte presença de conservantes artificiais. O consumo de cereais e outras comidas ricas em fibras é negligenciado. Os restaurantes da cadeia McDonald’s estão sempre cheios, e as lojas de massas e “sopas de fitas” são sempre um bom negócio, um dos poucos de baixo risco em Macau. Este é um ciclo que para grande parte da população começa no pequeno-almoço e acaba no jantar. O preço dos alimentos mais saudáveis e a falta de tempo são normalmente os argumentos mais utilizados para justificar certos abusos. O resultado é a hipertensão, o aumento de doenças cardíacas e a incidência cada vez maior de doenças do foro oncológico. O futuro não é lá muito risonho.

Quem anda por Macau já terá certamente reparado nos vendedores ambulantes que vendem massa, asas de galinha, pimentos recheados e outros salgados fritos em óleo que parece há muito ter passado do período recomendável de utilização – aquilo que os chineses chamam de “óleo de mil anos” (千年油). Pode até ter alguma piada referir-se assim a este óleo que, não sendo milenar, tem pelo menos alguns dias, senão semanas, e terá já servido para cozinhar quilos de petiscos, mas os consumidores não se queixam. O alvo predilecto são os mais jovens, e estas pequenas cozinhas móveis encontram-se em maior número junto das escolas. Um amigo contou-me que nos seus tempos de estudante tinha um colega que se aborreceu com um desses vendedores ambulantes, e atirou-lhe um cagalhão de cão que encontrou no passeio para dentro do óleo da frigideira. E o que fez o senhor? Removeu a poia e continuou a fritar como se não fosse nada. É uma história tão credível que nem ouso duvidar.

Já todos ouvimos mil e uma histórias arrepiantes sobre cozinhas e restaurantes, desde comida que cai no chão e é reposta na travessa, restos de salada reaproveitados para outros pedidos, cozinheiros que cospem na comida de algum cliente mais exigente ou antipático. Já todos encontramos um cabelo ou uma pestana na comida, em alguns casos mais extremos uma unha. Conta-se que um comensal terá encontrado um penso-rápido numa pizza que comeu num conhecido restaurante de Coloane, entretanto já encerrado. O melhor mesmo é não pensar como vão ali parar aqueles objectos estranhos. A velha imagem do “Garçon, há uma mosca na minha sopa” é uma daquelas coisas que não desejamos que nos aconteça. A única forma completamente segura de comer é em casa, e nós próprios descuramos por vezes algumas regras básicas de higiene sem que demos a isso muita importância. Afinal somos nós que vamos comer.

A comunidade indonésia, que na maioria professa a fé islâmica e recusa-se a comer porco, acaba por violar os preceitos “halal”, muitas vezes sem saber. Basta comer numa tasquinha de rua, ou comprar um bolo numa padaria, uma vez que estes usam óleo de porco na confecção dos alimentos. Mesmo o aparentemente inocente “pou-lou-bao” (“pão de ananás”, assim baptizado pela sua aparência e não pelo facto de conter ananás) é feito com óleo de porco. É ingenuidade pensar-se que os estabelecimentos de restauração vão investir no óleo que não seja o mais barato. A mentalidade vigente é a da maximização do lucro, mesmo que isso passe pelo desinvestimento na matéria-prima. Mesmo quem opta por comer em estabelecimentos mais caros ou da sua confiança não está completamente a salvo de surpresas desagradáveis. Há restaurantes com óptimo aspecto e um serviço de cinco estrelas com uma cozinha insalúbre oculta nas traseiras, operando em condições miseráveis. Acontece mais frequentemente em alguns hotéis ou restaurantes de “yum-cha”.

No que toca à segurança alimentar, temos tido conhecimento de episódios arrepiantes que nos chegam da China continental, mesmo aqui ao lado. Desde carne de rato a passar por carneiro, óleo reciclado do esgoto, ovos falsificados, vegetais carregados de pesticidas e animais doentes vendidos para consumo humano, hormonas de crescimento com potenciais efeitos cancerígenos, uma loja dos horrores. Isto preocupa-nos, pois tudo o que nos chega aos mercados é vindo do continente, e ninguém nos garante que o controlo de qualidade é efectuado por gente escrupulosa e honesta. A ambição humana e a cegueira do lucro fácil que tantas vezes leva a que se desrespeitem os mais elementares valores humanistas e por vezes do bom senso são um perigo real. Um acto de terrorismo com consequências de que nos apercebemos apenas quando é tarde demais. Estamos no epicentro de um terramoto provocado pelo egoísmo e pela mentalidade de que vale tudo para ganhar uns trocos a mais, mesmo que à custa da vida alheia. Só nos resta ficar atentos e ver onde pomos o pé neste campo minado. Primeiro desconfie, depois confirme, e só então confie.

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