França, 12 de Julho de 1998. Em Saint-Denis, Paris, jogava-se a final do mundial de futebol de 1998, entre a equipa da casa e o Brasil. O palco era o Stade de France, construído propositadamente para o evento. Os brasileiros, campeões em 1994 nos Estados Unidos e com uma equipa de sonho, eram amplamente favoritos, e os adeptos da canarinha festejavam já antecipadamente a conquista do “penta”. Poucas horas antes da decisão circulavam rumores que davam conta da indisponibilidade de Ronaldo, a maior estrela do “escrete”, e alinhar no onze inicial. A notícia deixou os adeptos do futebol em choque, mas o “fenómeno” viria mesmo a alinhar de início, aparentemente na sua forma ideal. Numa partida incarecterística, a França venceu com facilidade por 3-0, perante um Brasil apático, com uma prestação abaixo de mediocre. Muitos ficaram se entender o que se passou realmente nessa noite na capital francesa, mas para outros era tudo claro como água: as apostas desportivas tinham tomado conta do desporto mais popular do mundo.
Para os países onde o futebol é o desporto-rei, o fenómeno das apostas é relativamente recente. Ninguém precisa de apostar para tornar um jogo de futebol mais interessante, e mesmo as apostas que se faziam eram simbólicas, entre amigos e familiares, e por vezes nem eram feitas a dinheiro. Era aquilo que nos tempos da escola chamávamos “apostar a teimas”. No entanto outros países onde o futebol era menos evoluído já existiam bolsas de apostas para quase tudo. Nas Américas já se apostava no boxe, basebol, basquetebol e outros desportos tipicamente americanos, e na Ásia nem se fala: desde lutas de galos e de grilos, corridas de carros ou de cães e até na cor da camisola da próxima pessoa a virar a esquina se apostava. A razão de se apostar no vencedor de um evento competitivo tinha supostamente a função de “tornar o desafio mais emocionante”, e em muitas paragens esta emocionante modalidade paralela era controlada pelas máfias.
Os ingleses, mais experimentados na arte das probabilidades, lideraram a inclusão do futebol nas bolsas de apostas, levando os amantes mais apaixonados pela camisola. A do seu clube a torcer o nariz. À medida que se foi tornando num desporto milionário, os valores monetários envolvidos não passaram despercebidos a sindicatos do crime e mesmo outros investidores mais honestos, mas nem por isso menos gananciosos. Se no passado a vitória de uma equipa mais fraca sobre outra bastante mais forte era considerada como “parte da beleza do jogo”, a renovação de um “David contra Golias”, a realidade actual é bem diferente. Nos últimos anos muitos dos resultados “surpresa” têm levantado sérias suspeitas, e em alguns casos fundamentadas.
Antes daquele fatídico dia para Ronaldo e seus pares, outros episódios tinham marcado o início da perda da inocência no futebol de alta-competição. Quatro anos antes, no mundial dos Estados Unidos, o jogador colombiano Andres Escobar foi assassinado à porta de uma discoteca em Bogota, alegadamente por um agente de apostas desportivas, descontente com o autogolo do defesa contra os Estados Unidos, que afastou a sua selecção ainda na fase de grupos. Ainda antes do episódio do Stade de France, a corrupção desportiva provocada pela loucura das apostas grassava no continente asiático. Na Malásia, onde as apostas desportivas foram legalizadas em meados dos anos 90, os jogos do campeonato local eram vistos como uma autêntica farsa. Hong Kong, apesar da insignificância da sua liga, foi seguindo o mesmo caminho. Para os asiáticos, especialmente, a “marosca” de Paris que ditou a humilhante derrota da equipa favorita não era nenhuma novidade.
Depois do mundial de França, passaram a suceder-se os escândalos de manipulação de resultados. Algumas equipas mais fracas, conscientes de que perderiam perante outras mais credenciadas, manipulavam os números da derrota. Num destes casos mais recentes os turcos do Besiktas perderam numa partida da fase de grupos da Liga dos Campeões com os ingleses do Liverpool por oito bolas a zero. A diferença entre ambos os clubes não se traduzia em números tão exagerados, mas levantaram-se suspeitas de que os jogadores do Besiktas tinham apostado numa derrota “por muitos golos”. Outros casos implicam a fabricação de resultados surpresa entre equipas relativamente fracas mas mesmo assim capazes de derrotar facilmente outras claramente inferiores. O caso mais conhecido foi o da derrota da selecção da Macedónia, composta inteiramente por jogadores profissionais e onde pontificava Goran Pandev, uma das estrelas da Serie A italiana, perante os amadores de Andorra, um pequeno principado do sul de Espanha que serve normalmente de “saco de pancada” em fases de qualificação para campeonatos europeus e mundiais. Este escândalo teve ligações à bolsa de apostas de Macau.
E falando de Macau, onde sempre se apostou em tudo e mais alguma coisa, as apostas de futebol passaram a ser regulamentadas em 2000 pela Macau Slot, mesmo por altura do Europeu da Bélgica e Holanda. A loucura tinha chegado ao território, e transformou por completo a forma como se encarou o futebol ao mais alto nível, por vezes ao ponto de se cair no ridículo. Cada vez que Barcelona ou Real Madrid, por exemplo, perdem pontos na liga espanhola frente a equipas menos credenciadas, não falta alguém que venha imediatamente levantar suspeitas, acusando os clubes grandes de “levantar o pé” em nome dos interesses de bastidores que envolvem avultadas verbas que não apenas os prémios de jogo. É claro que não cabe na cabeça de ninguém que Barça e Real terminem a sua liga perdendo pontos apenas um com o outro, esmagando o resto da competição, mas mesmo que exista algum exagero da parte daqueles que só vêem cifrões à frente e acreditam que a maioria dos resultados são “cozinhados”, existe um fundo de verdade nesta teoria.
Os casos de batota são tantos que é impossível negar a presença deste mal que adultera a verdade desportiva, e a massificação do problema coincide com a ascensão económica de países onde a cultura futebolística não existe, ou dá ainda os primeiros passos. Nas economias emergentes onde apenas há poucos anos se investe no futebol ou na formação dos atletas é complicado incutir nos adeptos o “amor à camisola”, até porque os clubes locais têm apenas uma história recente, e poucos feitos de monta que façam os seus fãs vibrar de alegria. Não surpreende portanto que tantos clubes grandes do velho continente façam anualmente tournées por países asiáticos, onde os locais ainda torcem pelo Manchester United, Arsenal, Chelsea ou Liverpool, e em muitos casos por mais do que um destes ao mesmo tempo. Os clubes ingleses montaram uma máquina de propaganda tão eficaz nestes países onde o futebol é subdesenvolvido, que seria um disparate estagiar em qualquer outra paragem durante o defeso que não na Ásia.
O exemplo da China, que guardei para o fim, é o mais flagrante. O mercado chinês não se tornou apetecível nos últimos anos apenas para as multinacionais que procuram mão-de-obra barata que fabrique os seus produtos em larga escala. O maior poder de compra da população chinesa e o aparecimento da industria do lazer levou a que o número de adeptos de futebol se multiplicasse, especialmente entre os mais jovens. O pior foi quando o desporto de alta competição se misturou com a ambição e com o capitalismo selvagem criado pela abertura do mercado, uma combinação explosiva. Com a mão no detonador, os atletas de alta competição chineses passaram rapidamente de esperanças a vilões, frustrando a confiança depositada pela nação, que os leva cada vez menos a sério.
O futebol na China, que apenas conheceu a profissionalização já durante a década de 90, teve um desenvolvimento rápido, que culminaria na qualificação da sua selecção principal para um mundial de futebol em 2002, na Coreia e no Japão. Apesar da prestação modesta – três derrotas em três jogos – esperava-se que a partir daqui a direcção fosse no sentido de melhorar cada vez mais, e tornar-se presença assídua em campeonatos do mundo. O que aconteceu foi exactamente o oposto, com a selecção chinesa a ficar muitos furos abaixo das prestações de há dez anos, e alguns resultados levam a desconfiar das verdadeiras intenções dos seus profissionais. Uma derrota frente à Tailândia, equipa teoricamente inferior, por cinco bolas a uma levaram à demissão do nosso conhecido José Antonio Camacho, o espanhol que orientou Benfica, Real Madrid e selecção espanhola. Faltam acertar os valores da indemnização para que Camacho seja substituido, mas nem o ele nem outro treinador de alto gabarito têm uma formula mágica que resolva o problema da corrupção desportiva, que leva a que os atletas pensem mais nos valores monetários em causa do que em honrar a camisola do seu país.
A própria liga profissional chinesa, que vinha registando uma grande evolução em termos competitivos, perdeu credibilidade, minada por suspeitas de resultados combinados e outras maquinações onde nem as arbitragens ficam livres de responsabilidades. E o cancro vai-se espalhando muito além do futebol; Liu Xiang, velocista chinês que surpreendeu o mundo do desporto ao vencer a prova dos 110 metros barreiras nas Olimpíadas de Verão em Atenas no ano de 2004, desiludiu quatro anos depois em Pequim, quando falhou a revalidação do título perante o seu público. Os problemas físicos que o aponquentavam não foram de todo convincentes, e os queixumes do atleta aparentavam alguma teatralidade amadora. Diz-se que Li estaria a ser pressionado por “tubarões” das apostas desportivas para perder, contrariando assim o seu favoritismo inicial.
O exemplo mais recente da amplitude deste fenómeno ocorreu há uma semana nas Filipinas, onde decorreu o campeonato asiático de selecções em basquetebol. A equipa da China, que dominou a modalidade no continente asiático até muito recentemente, perdeu nos quartos-de-final com a sua conger de Taiwan. Um resultado tão surpreendente quanto suspeito, pois ao intervalo os chineses encontravam-se a vencer por dez pontos, acabando por perder pela margem de 17, uma diferença que poucos pensariam ser possível, mesmo no evento de uma surpresa. Os jogadores de basquetebol da China não desaprenderam. O que se passa é que aprenderam truques novos, e que nada abonam a favor da verdade desportiva.
Com tudo isto, e usando o exemplo da China como conclusão, quem ficam a perder são os adeptos e os valores fundamentais do desportivismo, e todo o esforço investido nos últimos anos terá sido em vão. O país mais populoso do mundo fez um investimento sério em capital humano e financeiro para competir com os melhores do mundo, e quem fica a perder são os jovens, os futuros atletas, que vão vendo gorados os seus sonhos de glória. Com esta atitude mercenária, qualquer dia os senhores das apostas desportivas inventam um jeito de adulterar os resultados das competições de ginástica ou de saltos para a água, onde a China mantém ainda um domínio com base no esforço dos seus atletas e no trabalho dos seus técnicos. Esse será o dia em que se dissipa qualquer réstia de credibilidade.
O que os amantes do desporto querem ver é as equipas a dar o seu melhor, e que o vença quem mais se esforçou para que esse melhor fosse melhor que o melhor do seu adversário. Os adeptos não querem ser enganados, e não querem o objecto da sua paixão na mão de gentinha sem escrúpulos que se aproveita dos que não conseguem assistir ao jogo pelo jogo, e procuram dele tirar contrapartidas financeiras. O desporto é supostamente uma actividade saudável, e quando se trata de alta competição, depositam-se esperanças naqueles que estão em campo, realizando os sonhos dos que estão de fora, tornando-se assim nos seus heróis. Caíndo para o chão, simulando lesões ou passando a bola ao adversário é que não chegamos lá. Os adeptos que antes iam ao estádio vão começando a ficar em casa, e os que assistiam pela televisão vão mudando de canal. Qualquer dia os apostadores ficam sem nada em que apostar.
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