domingo, 11 de agosto de 2013

A linha ténue entre a ordem e o caos


As autoridades de Macau em cooperação com a sua congénere da província de Cantão realizou durante o fim-de-semana uma série de rusgas a bares, discotecas e salas de karaoke do território. Como seria de esperar, foram feitas várias detenções, apreendidas quantidades significativas de drogas, cidadãs indocumentados ou sem visto de permanência legal, o costume. Outra coisa não seria de esperar, uma vez que estes lugares são frequentados por muita malta "da pesada", e os anjinhos já estão todos na caminha àquela hora. Tenho a certeza que se este tipo de operações se realizasse todos os dias, haveria sempre um número respeitável de passageiros no camburão policial. Mas assim estariamos a viver debaixo de uma espécie de lei marcial, portanto a regularidade com que esta "limpeza" se efectua é como uma forma de mostrar serviço, para que a população mais "boazinha" se sinta segura. Além disso é sempre salutar ver os nossos agentes trabalhar em conjunto com a malta do outro lado das Portas do Cerco. A sério, comove-me. É como naqueles filmes do tempo da Guerra Fria onde Americanos e sovietes se associavam no combate a um inimigo de ambos e pelo meio resolviam as diferenças, e acabavam amigos.

Recordo-me de assistir a rusgas deste tipo nos tempos em que frequentava a noite de Macau com regularidade. Ainda presente na memória tenho as duas vezes em que isto aconteceu na antiga discoteca do Hotel Mondial, e dos métodos pouco ortodoxos dos srs. polícias, que nesse tempo ainda deviam fidelidade à bandeira portuguesa. Vinham à paisana mas perfeitamente identificados, com colete e distintivo pendurado num cordão ao pescoço, e irrompiam pela discoteca adentro com cara de maus para mostrar que não estavam ali para dançar nem beber um copo. Pediam a identificação a toda a gente, gesticulando como quem diz "passa essa merda para cá", e deixavam em pânico a maior parte da freguesia, composta por filipinos, que mesmo não tendo nada a temer, sofrem de uma "alergia" natural às autoridades - talvez porque sabem que não serão tratados com o mínimo de respeito que qualquer ser humano merece. Entravam pelas casas-de-banho, garantindo que ninguém se escondia das garras afiadas da justiça, e nem o cuidado tiveram de levar algumas agentes do sexo feminino para verificar os lavabos das senhoras. Qualquer aeroporto ou posto fronteiriço tem mulheres-polícia encarregadas de revistar as senhoras, podendo assim apalpar à vontade sem ofender a dignidade a ninguém.

Numa dessas rusgas no Mondial lembro-me de um pequeno incidente que se passou comigo. Permanecia calmamente sentado a beber o meu gin tonico e a apreciar a música, fazendo o possível para ignorar os valentões a brincar aos "NYPD Blue", série muito popular naquela época, e esperar mais ou menos meia hora para que voltasse tudo ao normal. Quando um dos agentes me pediu a identificação, mostrei-lhe o BIR, permanecendo sempre sentado, e pronto, estava despachado. Passados nem cinco minutos outro agente volta a pedir que me identifique, ao que lhe respondo "já mostrei ao seu colega", evitando acrescentar "portanto não me chateies e desamparam-me a loja". Insistiu, dizendo que estava a fazer o seu trabalho, e voltei a dizer-lhe que já me tinha identificado, e que no estava para ficar ali a noite toda a puxar da carteira cada vez que um dos bófias me achasse bonitinho e me pedisse a fotografia. O agente hesitou por uns segundos, enquanto eu o fitava com uma cara de quem começava a ficar com a noite estragada, e foi embora. Valeu-me ser português, pois fosse um dos filipinos que engoliam em seco perante os convidados-surpresa que chegaram à festa, e teria que mostrar o passaporte dez vezes, se necessário.

Não ajo desta forma com as autoridades por despeito ou porque me julgo acima da lei, mas como quem não deve não teme, espero ser tratado com o mínimo de respeito por quem supostamente devia estar a servir os cidadãos, e não a molestá-los. Mesmo alguém suspeito de ter cometido um crime grave deve ser tratado como um ser humano, pelo menos até que se confirmem as suspeitas, e depois lá na esquadra podem partir-lhe uma cadeira nas costas à vontade se ele não quiser colaborar com a justiça. Até acho bem que o façam, dentro dos limites do aceitável, lógico. Só que durante uma simples e rotineira operação de identificação em busca de trabalhadores ilegais, que muitas vezes passa por pedir a documentação a quem passa na rua, pede-se acima de tudo bons modos por parte dos agentes da lei. Não são raras as vezes que vejo dois agentes a ler de trás para a frente o passaporte de um trabalhador não-residente, quando bastava confirmar se a fotografia corresponde com a cara do portador do documento, e verificar a validade do visto de permanência. Enquanto procedem à minuciosa inspecção do passaporte, o pobre emigrande fica ali a secar, aguardando que os srs. polícias terminem a sessão de leitura. Já cheguei a assistir a uma cena em que um filipino - que nem era trabalhador não-residente - tentava explicar que tinha vindo participar nas regatas do Barco Dragão, e um dos agentes mandou-o calar. É uma imagem que as autoridades passam que nada abona em seu favor.

Existe em Macau um receio inato pela figura da autoridade, e não me refiro apenas aos não-residentes, mas à população em geral. No outro dia conversava com um colega a propósito das buscas feitas às residencies particulares, e ele nem sabia que era necessário um mandato judicial assinado por um juíz para permitir que a polícia entre no lar de alguém. Para que um juíz assine esse mandato é necessário que existam suspeitas concretas e fundamentadas de que na residência em questão se estão a praticar actividades ilícitas. Nenhum juíz assina - ou pelo menos não o deve fazer - só porque a polícia "desconfia". Tal como o meu colega, há muitos residentes que desconhecem este e muitos outros direitos que asseguram a sua privacidade, e abrem a porta à polícia sem questionar seja o que for. O subconsciente obriga-os a fazê-lo automaticamente, pois acreditam que desafiar as autoridades poderá trazer-lhes complicações futuras, ou que podem ficar referenciados como desobedientes. Se existem receios desta natureza, é sinal de que os responsáveis pela manutenção da ordem pública optaram por impôr o medo em vez de respeito. Quem tem o dever de fazer cumprir a lei passa muitas vezes por cima da própria lei, escudando-se no princípio de que "os meios justificam os fins". Isto não é bem assim. É impossível às autoridades dar conta de todas as infracções que se cometem diariamente um pouco por toda a parte, e por um lado ainda bem que é assim. Não me agrada a ideia do "big brother", é um mundo onde não gostaria de viver.

Espero que não me interpretem mal, ou que pensem que defendo alguma forma de anarquia ou que devia existir menos empenho no combate ao crime. Nada disso. Sou apologista de que o tratamento que se deve dar à população civil deve corresponder com as suas acções, e não descarto sequer o uso da violência em algumas situações mais extremas. O que se deve evitar para que a relação entre o cidadão e as autoridades seja pacífica é que se trate toda a gente como um potencial criminoso. O nosso direito assenta no princípio de que toda a gente é inocente até prova em contrário, e não vice-versa. Se eu fosse um agente da autoridade gostaria de ser tratado com simpatia pela população e com o respeito inerente à minha função de a proteger. Quando passa um polícia as pessoas deveriam sorrir, como que agradecendo a sua presença que as faz sentir seguras. Em vez disso desconfiam, escodem-se, viram a cara e alguns pensam mesmo "olha este...o que é ele quer?". É do conhecimento geral que grande parte dos agentes policiais optaram por essa carreira por não terem muita queda para os estudos, ou um talento que os leve a procurer outra profissão, mas pode-se ultrapassar esse "handicap" com diplomacia, exercendo com esmero a arriscada tarefa de manter a ordem social e combater os marginais que se alimentam do caos. Não é preciso qualquer formação suplementar para cumprir este desígnio. Basta ter bons modos.

Sem comentários: