Nota: este artigo não visa descriminar nenhuma família ou alguém em particular. O texto é uma mera dissertação derivada de simples observação, e não é suportado por qualquer investigação ou base científica. Caso alguém se sinta excluído, isto será devido a simples omissão, e nunca intencional.
O apelido, ou “sobrenome”, na norma brasileira, é algo de muito importante, que diz muito do que somos. Herdá-mo-lo dos nossos pais, vamos passá-lo aos nossos filhos, que por sua vez passarão aos seus. Na cultura chinesa atribui-se uma importância especial ao apelido, que leva a que todo o casal minimamente tradicional anseie por um filho varão, que preserve o nome da família para as gerações seguintes. Existem mesmo casos em que são dados os dois apelidos dos pais às crianças, ou que se adopte apenas o apelido da mãe, se esta for filha de alguém rico ou ilustre, mas que não tenha conseguido produzir um herdeiro macho.
Em Macau a esmagadora maioria da população é chinesa, portanto os apelidos predominantes são, logicamente, os chineses. Wong e Chan são os apelidos mais comuns, seguidos pelos Leong, Fong, Cheong, Ho, Lou, e o quase impronunciável Ng, não necessariamente por esta ordem – para uma contagem mais precisa, basta consultar a lista telefónica. Existem dois “wong” e dois “ng” diferentes, mas fiquemos pela romanização. Não existem muitos apelidos chineses, o que significa que pode existir um grupo de indivíduos com apelido “Chan”, sem que isso signifique que sejam familiares. É no fundo o que acontece com os nossos apelidos mais conhecidos: os Santos e os Silvas. Curiosamente o nosso actual Chefe do Executivo tem um apelido relativamente raro: Chui. Pode-se mesmo dizer que alguém com este apelido em Macau tem uma forte probabilidade de estar aparentado com esta familia, conhecida por ser uma das “tradicionais” do território.
Não é muito agradável ter um apelido feio ou que tenha um significado específico, daqueles que puxam pelo dicionário. Mesmo os chineses não se livram desta sina, e existem mesmo apelidos como “morte”, “zero” ou “vinagre” (ver
este artigo)
Um dos nossos mais famosos futebolistas de sempre, o meu conterrâneo Paulo Futre, tem um apelido que significa “sovina, maltrapilho, homem desprezível”, se bem que pouca gente pensa nisto quando refere o nome do Paulo, que é um rapaz divertido, sem nenhuma das qualidades inerentes ao seu apelido. Existe ainda lá no Montijo a família “Patego” (simplório, pacóvio), e há apelidos que não lembram ao Diabo: Camelo, Gago, Frasquinho, Abelho, Picão, Bicudo, Regalado, Bugalho, Guedelha e muitos outros. Gente que deve ter vergonha de levar os filhos ao registo civil. Depois há apelidos que sofrem de uma carga histórica ou que ficam associados a pessoas que se destacaram por motivos diversos e nem sempre consensuais, como são os casos de Salazar ou Taveira.
Mesmo o meu apelido, Crespo, não é especialmente feliz, e só beneficia do facto de ser mais ou menos raro. Na escola não me livrei da risota dos colegas quando aparecia num livro de textos qualquer coisas como “cabelo crespo”, e quando oiço no Boletim Meteorológico “mar encrespado de pequena vaga”, sinto que tem qualquer coisa a ver comigo. Mesmo assim é melhor que ter apelidos dados a piadolas ou equívocos, como são Seabra ou Carvalho. Há alguns anos residia em Macau um senhor que era bastante conhecido entre a comunidade portuguesa que tinha “Pé-Curto” como um dos seus apelidos. O meu médico de família lá em Portugal era o dr. Braço-Forte. Isto são apelidos engraçados, com um toque muito nativo-americano, quem sabe de origem apache. Será que existe a família Orelhas-Grandes ou Nariz-Comprido? Qual é o nome completo do Júlio Isidro? Ainda em Macau trabalhou durante alguns anos um jornalista de apelido Barata-Feyo. Sem comentários.
As famílias macaenses, dos portugueses mestiços de Macau, têm uma particularidade curiosa. Sendo portugueses ou cristãos de origem, têm nomes portugueses, apelidos portugueses, e não só. Este assunto dá pano para mangas. Existem apelidos que devem ser praticamente exclusivos a Macau, e que nunca tinha ouvido falar enquanto vivi em Portugal. Pelo menos não se conhece nenhum político, artista, jogador de futebol ou outra personalidade em Portugal que tenha um destes apelidos. São os casos de Manhão, Pedruco, Cachinho, Marreiros, Lameiras, Lagariça ou Estorninho, além dos compostos, como os ilustres Senna Fernandes, os respeitáveis Nolasco da Silva ou ainda os sólidos Madeira de Carvalho, este último um caso curioso, pois especifica o tipo de madeira, e terá uma origem que me aguça a curiosidade.
Os portadores originais destes apelidos eram originários de Portugal, naturalmente, e talvez muitos dos seus descendentes desconheçam o ancestral que lhes deu o apelido. Eram normalmente militares ou marinheiros que se radicaram em Macau, e sendo esta uma sociedade marcadamente patriarcal, eram muito raros, para não dizer inexistentes, os casos de homens chineses casados com mulheres portuguesas – até porque em Macau as mulheres naturais de Portugal não eram assim tantas. Daí que os apelidos tenham passado de geração em geração, resultando em famílias relativamente numerosas, algumas que se ramificam já em primos dos mais variados graus, e em muitos casos espalhadas pelos quatro cantos do globo pela diáspora macaense. A originalidade dos apelidos deve-se possivelmente aos tais portugueses serem, quem sabe, filhos únicos, ou cuja descendência em Portugal se tenha dissipado através do casamento ou da emigração. Ou pode ser que não tenham tido mais descendência. Faria algum sentido se por acaso muitos desses portugueses que chegaram a Macau há várias décadas fossem originários do Alentejo, onde existem apelidos tão raros quanto pitorescos. Mas é claro que existem também famílias macaenses com apelidos bastante comuns em Portugal, e que têm lá ainda parentes, mesmo que distantes. Temos também as famílias Silva, Gonçalves, Ferreira, Pinto, Lopes, Marques ou Rodrigues, entre muitas outras.
Mas os apelidos da comunidade macaense não se cingem à matriz portuguesa. Existem outros de origem diversa, sul-americana, mexicana ou filipina e outras, como são os casos dos Boyol, Gracias, Perez, Carion, Bañares, Badaraco, Basaloco, Anok, Petrovich, Ritchie, Robarts ou Aconcci. Algumas famílias não têm sequer qualquer ligação com Portugal, e outras são descendentes de goeses, africanos e outros estrangeiros, ou cristãos-novos, chineses que adoptaram nome e apelidos portugueses através do baptismo. Uma especificidade curiosa prende-se com a qualidade absorvente da nomástica das famílias macaenses: os descendentes têm sempre nomes portugueses, mesmo nos casos das mulheres que casam com homens chineses, o que vai acontecendo cada vez mais. Mesmo assim têm um nome chinês, o que é sempre muito útil, e que coexiste com o nome português. A origem das famílias macaenses e dos seus apelidos seria sem dúvida um tema interessante de aprofundar. Há alguns anos foi feita uma compilação em dois volumes, intitulada exactamente “Famílias Macaenses”, que de facto enumera as famílias, ascendentes e descendentes, e dá várias pistas, mas não explica tudo.
3 comentários:
os apelidos chineses mais comuns sao chan, lei , cheng , Wong e Ho, segundo esta mesma ordem
qual é a sua fonte?
O excelente "Famílias Macaenses" de Jorge Forjaz é uma obra de referência na genealogia macaense, tendo contado com contributos documentais de muitos macaenses, para além das fontes habituais. São 3 volumes que recomendo.
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