sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Engraçadinha: Seus Amores e Pecados


A TDM tem passado de segunda a sexta a série brasileira "Engraçadinha: Seus Amores e Seus Pecados", entre as 22: 10 e as 23:00, com a chancela de qualidade da Rede Globo. A série é já bastante antiga, e foi transmitida no Brasil em Abril de 1995, mas isto não significa que esteja datada, antes pelo contrário. O argumento é da autoria de Nélson Rodrigues, jornalista e escritor falecido em 1980, que é considerado um dos maiores dramaturgos em língua portuguesa. A história da "Engraçadinha" é intemporal, foi contada pela primeira vez no romance "Asfalto Selvagem: Engraçadinha, Seus Amores e Seus Pecados", em 1959, e passou para o grande ecrã com o filme "Asfalto Selvagem", de 1964, com uma sequela dois anos depois intitulada "Engraçadinha depois dos 30". Em 1981 foi feito outro filme, "Engraçadinha", com Lucélia Santos no papel principal, e que lhe valeu o prémio de melhor actriz esse ano no Festival de Brasília.

A série de 18 episódios divide-se em duas partes distintas. A primeira no início dos anos 40, situada no estado nortenho do Espírito Santo, mostra-nos um Brasil ainda conservador, onde era difícil fugir aos rígidos padrões morais vigentes. É neste ambiente que conhecemos Engraçadinha (interpretada por Alessandra Negrini, conhecida em Macau pela novela "Paraíso Tropical", e que fazia aqui a sua estreia), a jovem filha do deputado conservador Arnaldo (Claúdio Corrêa e Castro), e noiva do aborrecido Zózimo (Pedro Paulo Rangel), amigo de seu pai. Engraçadinha é apaixonada pelo seu primo Sílvio (Ângelo Antônio), com quem cresceu, e que está noivo da sua melhor amiga Letícia (Maria Luísa Mendonça). Engraçadinha não se conforma com a sua sorte, e seduz Sílvio no dia do seu casamento com Letícia, atraindo-o para a biblioteca, onde expressam fisicamente o seu desejo durante tantos anos acumulado. Engraçadinha revela um lado líbido espantoso, uma capacidade sedutora única, fruto do lado humano e feminino que a sociedade em que vivia sempre oprimiu, mas que era mais forte que ela. Da relação casual, Engraçadinha engravida, para choque do seu pai, que havia guardado em segredo que os dois eram de facto irmãos. Para piorar as coisas, Letícia revela também que sempre se sentiu atraída pela amiga, e encontra na traição do noivo uma oportunidade para um eventual triângulo amoroso, coisa tida como impossível para as convenções da época. Sílvio não consegue lidar com a sua fraqueza, e decepa o próprio sexo, numa cena tanto trágica como gráfica. O deputado Arnaldo deixa-se consumir pela culpa, e suicida-se. Letícia fica sozinha, e Engraçadinha casa com Zózimo, entendendo o seu destino como um mal menor, perante a imensa tragédia que ela própria causou.

Passam-se dezassete anos, e encontramos uma Engraçadinha mais madura, e agora interpretada pela nossa conhecida Claúdia Raia, na altura no auge da sua carreira. Engraçadinha mudou-se para o Rio de Janeiro e converteu-se à Igreja Evangélica, e dedicou-se a educar os filhos de acordo com a sua fé. O neo-conservadorismo de Engraçadinha leva-a ao ponto de coabitar com o marido Zózimo sem que deixe este vê-la sem roupa (só faziam amor com a luz apagada). Uma tortura para o marido, pois o corpo da sua mulher é, como sempre foi, escultural. Zózimo é um homem resignado ao facto de que a mulher não o ama realmente, e que não lhe consegue proporcionar prazer sexual, mas satisfaz-se com o simples sentimento de propriedade. A filha de Engraçadinha, Silene (Mylla Christie, sardenta, lindíssima), herdou o líbido da mãe, para desgosto desta, e não tem qualquer pudor em entregar-se a paixões passageiras com jovens da sua idade. Apesar da sua maturidade e mudança de valores, Engraçadinha continua a atraír os homens, nomeadamente o juíz Odorico Quintela (Paulo Betti, num papel deliciosamente cómico) e Luis Claúdio (Alexandre Borges), que leva Engraçadinha a despertar o seu lado sensual e selvagem, entretanto reprimido. Entretanto Letícia reentra em cena, mais velha e assumidamente lésbica, e decidida a retirar de Silene o prazer que lhe foi negado pela sua mãe, Engraçadinha. A descrição do Rio de Janeiro do início dos anos 60 é excelsa, e transmite bem a mudança de valores e a entrada na modernidade que se verificava no Brasil daquele tempo. Existe um argumento paralelo, o drama do jovem Leleco (Caio Junqueira), que assassina o amigo Cadelão (Luiz Maçãs, actor que viria a morrer em 1996 aos 32 anos, alegadamente de anorexia nervosa) depois deste o ter tentado violar. É caso para dizer que todas as valências da sexualidade estão presentes neste enredo.

Confesso que não conhecia esta história de ficção fantástica, e foi por acaso que comecei a seguir a série. É uma produção bastante audaz, como nos têm habituado tantas séries brasileiras, mas que aqui "corre a galope" sem qualquer tipo de preconceito, qual Lady Godiva. Temos o líbido, a sensualidade, a paixão carnal e a nudez tratados de forma directa e sem rodeios, com interpretações e diálogos a condizer. Agrada-me especialmente a forma como nos é dado a conhecer o monólogo interior dos personagens, aquilo que estão a pensar. Surpreendeu-me a qualidade mas não a natureza do argumento, não fosse o próprio Nélson Rodrigues um autor orgulhosamente "brasileiro"; o homem que um dia disse que "A Europa é uma burrice aparelhada de museus". A sua audácia é tenaz, pois apesar de ter nascido em 1912, defendia que "Todo tímido é candidato a um crime sexual". Um homem muito à frente do seu tempo, que lia bem a natureza humana e oferecia-nos o sensual e o erótico sem cair no facilitismo da libertinagem. Se não tem seguido as aventuras da Engraçadinha, tenho imensa pena, pois foi uma das surpresas mais agradáveis com que a TDM nos presenteou recentemente. Mas ainda vai a tempo de apanhar o final, e garanto que não se vai arrepender. Em todo o caso pode adquirir o DVD da série completa na Amazon, e aqui fica o link: http://www.amazon.com/Engracadinha-Seus-Amores-Pecados/dp/B000I0SHMK/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1356721104&sr=8-1&keywords=engra%C3%A7adinha . Não precisam de agradecer...

1 comentário:

Anónimo disse...

Eh eh critica televisiva de se lhe tirar o chapéu. E o detalhe do link na Amazon é pertinente. Parabéns.