Tenho um colega e amigo macaense que se orgulha de nunca ter lido um livro em toda a sua vida. Orgulha-se sobretudo porque isto nunca foi uma exigência para que se sentisse realizado. Nunca leu um livro, ou sequer lhe passou pela cabeça pegar num livro e ler, porque ler “dá sono”, e além disso os clássicos estão “desactualizados”, e “não se enquadram na realidade actual”. Talvez isto faça sentido…no tempo de Dickens e do Marquês de Sade não existiam telemóveis e internet. Socorre-se ainda de um provérbio chinês que diz que “aprende-se mais viajando do que lendo livros”, ou qualquer coisa assim. Também não interessa porque é um provérbio parvo. Quer dizer que melhor que ler a “Volta ao mundo em 80 dias” de Júlio Verne é…dar a volta ao mundo em 80 dias? E desde quando é que ler é incompatível com viajar? Qualquer turista que se preze leva consigo qualquer coisinha para ler durante as viagens, e mesmo além disso.
O meu colega defende-se com as estatísticas, e diz que em Macau é muito fácil encontrar quem nunca tenha lido um livro na vida. Aí ele é bem capaz de ter alguma razão. Há livros e há livros, e atendendo que a esmagadora maioria da comunidade chinesa não domina uma língua estrangeira, fica dependente dos livros na sua língua materna. Não sei bem o que se passa nas livrarias chinesas, mas tenho a certeza que a maioria deixa de fora as traduções para chinês dos clássicos (que existem), ora porque desconhecem o autor ou porque versam sobre uma realidade ocidental, venha o Diabo e escolha. Para o chinês comum o interior do Brasil que tão bem descreve Jorge Amado em “Gabriela cravo e canela” ou a França revolucionária de “Les Misérables”, de Victor Hugo são realidades distantes e dizem-lhes muito pouco. Desconfio que se inclinem para novelas ou romances chineses, onde pouco se aprende, obviamente. O leitor chinês é em geral muito pouco globalizado, é fechado no seu mundo. E para isto nem é preciso inquiri-lo sobre os seus hábitos de leitura. É algo que se percebe facilmente, da sua vivência no dia-a-dia.
Se os hábitos de leitura forem uma herança da presença portuguesa, então o caso está muito mal parado. Os portugueses são, de um modo geral, uns grunhos que acham que ler é uma “perda de tempo”. Lembro-me quando era jovem nas férias de Verão escutar uns indígenas que ficavam estupefactos com a imagem de turistas alemães e ingleses a ler na praia: “Olha pra estes gajos, gastam massa para vir até cá e ficam ali a ler, fosga-se!”. Pois é, não se andavam a embebedar ou a dar quecas nas camones fêmeas…estavam a ler livros, os palermas. Existe ainda em Portugal o preconceito de que quem lê muito “é culto”, ou “intelectual”. Nada mais errado. Mesmo uma grande cavalgadura pode gostar de ler, e até entende o que lê. Basta-lhe ter adquirido esse hábito.
Tinha um professor, que ainda hoje contacto e venero como se fosse um semi-deus, que nos obrigava a ler pelo menos um livro por mês e apresentar um resumo. Isto pode parecer uma ideia um bocado fascista (por exemplo, detestei “Viagens na minha terra”, de Garrett), mas resulta. Ser obrigado a ler e a perceber um livro, é como perder a virgindade. Se for um livro bom que nos cative, é como um amante competente. Se for um livro que não gostamos, tentamos outra vez. Depois de rompido o hímen literário, que é como quem diz, cultivado o gosto pela leitura, procuram-se livros bons para ler. “Os Maias”, por exemplo, leitura obrigatória no 11º ano, lio-o de uma assentada, num fim-de-semana. Foi como fazer amor com a Dita Von Teese – nunca podia ser mau. Quem nunca leu um livro porque nunca foi obrigado não entende isto. Não sabe o que é bom.
Voltando aos hábitos de leitura regionais, não sei o que se passa no continente chinês, até porque as opções são condicionadas pela existência da censura, mas sei que em Taiwan, por exemplo, existem bons hábitos de leitura. Cada taiwanês com o secundário completo lê em média sete ou oito livros por ano. Isto vale por dizer que por cada taiwanês que nunca leu um livro, existem outros que os devoram. Isto é excelente. Por cada néscio deviam existir sempre dois ou três literados. Olhando aqui para o lado, em Hong Kong, a situação torna-se ainda mais aguda: Macau é um deserto cultural comparado com a ex-colónia vizinha.
Para isso basta comparar as livrarias de Macau com as de Hong Kong para se ficar completamente esclarecido. Não é a toa que muitos honconguenses dominam o inglês e orgulham-se disso. Foram obrigados a ler! A aprender! Se os residentes de Macau desprezam os de Hong Kong por achar que eles “têm a mania que são espertos”, têm nesse desprezo um fundamento válido, mas fatalista. É que a malta de Hong Kong lê mais, e melhor, e por isso tem a cabecinha cheia de coisas úteis, que sempre pode usar quando chega a hora de fazer a diferença. Não podemos censurar os nossos vizinhos por se terem dotado de maior elasticidade cerebral. Também tivemos essa oportunidade mas desperdiçá-mo-la, porque não quisemos “perder tempo” a ler.
Em Macau a Livraria Portuguesa tem uma oferta fantástica para a dimensão do território e para a sua restrita clientela, mas com o óbice de ser quase toda (toda, mesmo?) em português. Isto serve a comunidade lusófona, sem dúvida, mas faz muito pouco pela média global. Por acaso a maioria dos portugueses da metrópole que vivem actualmente em Macau têm não só uma educação superior mas também bons hábitos de leitura, e por isso a Livraria prospera. Antes de 1999 tinhamos por aí alguns compatriotas que se limitavam a garimpar a colónia, mesmo os menos qualificados, e felizmente hoje apenas os mais intelectualmente apetrechados sobrevivem. Não tirem segundas leituras disto, mas as coisas são o que são, e o tempo dos generais que não liam já acabou.
O ideal seria que Macau, para bem da massa cinzenta que existe na cabeça de cada um adquirisse mais hábitos de leitura. Que em vez dos romances chineses ou os manga japoneses os estudantes enfiassem nas malas autores como Mark Twain, Tolstoi, Jean-Paul Sartre, George Orwell (é uma vergonha que pouca gente tenha ouvido falar do autor de “1984” ou “Animal Farm”) ou mesmo José Saramago, já com traduções disponíveis em chinês. Era saudável que suspirassem com a poesia de Lord Byron, Percy Shelley ou James Joyce – era interessante traduzir Bocage e Pessoa para a língua chinesa, certamente derrubavam muitas barreiras literárias. É triste que conheçam Sherlock Holmes dos enlatados hollywoodescos mas não saibam que há mais de cem anos um tal Arthur Conan Doyle criou este herói e que existe uma vasta literatura muito mais excitante que os músculos e a cara bonita de Robert Downey Jr. E sobretudo é importante que leiam. E se não lerem, que pelo menos não se orgulhem disso, como o meu amigo. Assim Macau passava a ser também a cidade do conhecimento, do “logos”, em vez de ser apenas a cidade do “adeus, até logo”.
Sem comentários:
Enviar um comentário