Aproveitei estas curtas férias de Natal para ver e rever alguns filmes (always watch good moves…), e do que passou pelo meu pequeno cinematógrafo caseiro, destaco dois títulos, que apesar de caberem na definição de “rever” acima mencionada, foram mesmo assim uma experiência deliciosa. Especialmente porque os revi na companhia de quem assistia pela primeira vez a estas obras-primas.
O primeiro foi “Ai no corrida”, filme japonês de 1976 realizado por Nagisa Oshima. Uma co-produção francesa, o que ajudou à promoção internacional da película. O título do filme traduz-se literalmente para “Tourada”, mas o título internacional e competentemente traduzido para português ficou “O Império dos Sentidos”. Este excelente filme, um dos melhores que já vi, causou uma enorme polémica em finais de 1991 em Portugal quando foi transmitido pela RTP2 numa sexta-feira à noite. A polémica deveu-se à natureza primariamente pornográfica do filme, que contém cenas de sexo explícito durante grande parte do seu tempo – para não dizer a totalidade. O filme, contudo, não recebeu a classificação de “pornográfico” e foi distribuído no circuito “normal”, tornando-se exibível no pequeno ecrã. Apesar da natureza das imagens que ultrapassam o simples erotismo durante os 108 minutos de duração, o filme conta uma história fascinante de amor, paixão, ciúme, traição, e em última instância obsessão e ódio, com um desfecho sangrento a condizer. É complicado perceber tudo isto num filme em que “há foda do princípio ao fim”, usando uma linguagem popular que pode muito bem servir de crítica cinematográfica instantânea. Mas o filme não é para crianças, e um adulto normal terá a maturidade suficiente para reagir de a cenas de intimidade entre seres humanos com naturalidade. Além do mais, o filme transmite mais do que a simples vertente erótica; algumas imagens de exteriores transmitem uma imagem industrializada do Japão dos tempos da Guerra do Pacífico, quando era já a maior potência asiática. O fio condutor do enredo não é uma desculpa para a badalhoquice, como se pode concluir de uma observação menos cuidada. A natureza alegadamente pornográfica faz parte da visão de Oshima, que é um realizador respeitável e aclamado com uma filmografia extensiva. O filme, situado em 1936, é inspirado num episódio verídico que chocou o Japão nos anos 30. Uma ex-prostituta, Sada, emprega-se num hotel, cujo proprietário é Kichizo, um homem casado, mas mesmo assim um boémio que não dispensa de quando em vez a visita de uma geisha, uma atitude tida como normal na sociedadade patriarcal japonesa. Kichizo abusa sexualmente de Sada, que gosta da experiência, e consequentemente inicia com ela uma relação extra-conjugal que vai além da mera expressão física, que temos oportunidade de testemunhar várias vezes e em diferentes tons numa intensidade crescente. Apaixonam-se um pelo outro, e Sada torna-se obcecada com o amante, ambicionando o uso exclusivo do seu sexo, que idolatra ao ponto de se desvalorizar o facto que se trata apenas de uma extensão do homem. O filme decorre numa espiral de luxúria, à medida que os amantes vão encontrando formas variadas de alimentar o fogo da paixão, e maximizar o prazer, recorrendo ao sado-masoquismo e outros expedientes menos ortodoxos. Não vou dizer como acaba o filme, se bem que muitos dos leitores já conhecem o desfecho, mesmo que através de outrem. Não sei quem foi o génio que decidiu passar este filme na RTP2 naquela noite de sexta-feira (infelizmente não aproveitei essa oportunidade, que me passou ao lado), mas esqueceu-se que vivia na Parvónia, onde os indígenas não estavam preparados para um filme “chinês” (era o que se ouvia nos dias que se seguiram ao “escândalo”) tão atrevido para as convenções da época. Pouco importa que os filmes porno “hardcore” fossem dos mais requisitados nos clubes de video naquele tempo, mas esta era uma ousadia que o canal público de televisão não estava habilitado a cometer. O bispo de Bragança diz que “aprendeu mais numa hora do que durante a vida toda”. O sr. bispo viu o filme “por acaso”, apesar de ter passado já depois da meia-noite e no canal alternativo da televisão pública, e se calhar até gravou, como “prova” do sacrilégio, entenda-se. Pensavam o quê?
Outro filme que revi na mesma noite foi “A Guerra do Fogo”, de 1981, do francês Jean Jacques-Annaud, um dos poucos realizadores franceses de que gosto especialmente. Vi este filme pela primeira vez durante uma aula de História “fora de horas”, e graças à iniciativa do prof. Francisco Lopes, o melhor professor que alguma vez conheci e que tive a singular honra de ser aluno. O filme é uma excelsa transposição para o celulóide da obra homónima de dois irmãos belgas, Joseph Henry e Seraphin Justin Boex, que escreveram no início do século passado várias obras de ficção histórica tendo como temas a natureza e a pré-história. E é exactamente nos tempos pré-históricos que decorre a acção de “A Guerra do Fogo”, mais precisamente há 80 mil anos, no período do Paleolítico. Como o nome indica, o filme conta as aventuras de um grupo de antepassados do Homem actual e a sua luta pelo bem mais precioso daqueles tempos remotos: o fogo. A obtenção do fogo e o conhecimento de como fabricá-lo podia fazer toda a diferença naquelas sociedades nómadas, e era um símbolo do poder. O fogo tinha o dom de aquecer, de cozinhar os alimentos, de tornar a vida muito mais fácil. Os três personagens que partem à procura do fogo encontram inúmeros obstáculos, desde tribos hostis, armadilhas naturais e animais ferozes. O realismo do trabalho de Annaud leva a que não existam diálogos durante os 100 minutos de duração do filme. Os personagens comunicam por sons rudimentares e por gestos, e a interpretação é soberba. Everett McGill, Ron Pearlman (mais conhecido pelo seu papel principal em “Hellboy”) e a lindíssima Rae Dawn Cheong estão irreconhecíveis debaixo da caracterização que os leva vários degraus abaixo na escala da evolução. Não foi surpresa para ninguém que tenha recebido o reconhecimento da academia na categoria de melhor maquilhagem na edição de 1983 dos Oscares. “A Guerra do Fogo”, apesar da sua temática paradoxal – é talvez o melhor filme sério sobre o Paleolítico, e também o único – devia pertencer a todas as listas de filmes indispensáveis. É uma experiência única, e nem o facto de exibir comportamentos animalescos e violentos, nudez e mesmo algum sexo e canibalismo, devia impedir os mais novos de visioná-lo, e com isso aprender. É bastante educativo, e qualquer jovem com mais de 12 anos não deve ter problemas em assimilar o seu conteúdo.
E o que achou a minha companheira desta sessão dupla de filmes a que teve a oportunidade de assistir pela primeira vez? Adorou. Por todos os motivos acima referidos e mais alguns. É sempre bom assistir a cinema de qualidade, especialmente se o fizermos em boa companhia.
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