Ontem falei neste espaço do programa TDM talk show, transmitido na última quinta-feira, onde um painel composto por duas figuras conhecidas do território e um investigador estrangeiro discutiam a questão da identidade em Macau, tendo como pretexto mais um aniversário da RAEM, a forma actual do território com uma história documentada de quase 500 anos, e que mesmo antes da chegada dos primeiros portugueses era já um porto habitado do sul da China.
Não me incomoda que se debata isso da identidade, até acho bem que se faça, que se discutam experiências e que partilhem conclusões, mas esta é uma discussão que está à partida condenada ao fracasso. Não produzo esta afirmação por arrogância ou por desprezo por quem anda no terreno a percorrer quilómetros, recolher testemunhos e queimar as pestanas nos livros e restante documentação existente. Apenas porque não existe uma conclusão que não possa pecar por falaciosa e exclua desse pressuposto de “identidade” parte significativa dos intervenientes da história do território.
Para que se perceba bem o que estou a dizer, tomemos como exemplo o período compreendido entre 1972 e 1999, um espaço de apenas 27 anos, uma geração, tempo que dificilmente teria importância nas contas de quem procura um conceito tão amplo e abrangente como a “identidade”. Ora neste período de pouco mais de um quarto de século, Macau assistiu ao fim da presença militar portuguesa, o 25 de Abril e o novo estatuto de “território chinês sob administração portuguesa”, a emigração massiva de famílias locais para o Brasil e outros destinos, a assinatura da declaração-conjunta e finalmente a passage para a soberania chinesa. Durante este curto espaço de tempo partiram e chegaram um sem número de actores que contribuiram para mudar a face demográfica do território. Antes disso outros períodos de tempo houve, uns mais curtos, outros mais extensivos, em que ocorreram outros êxodos importantes. Aspectos históricos facilmente comprováveis que colocam em cheque qualquer teorização sobre uma eventual identidade específica das gentes de Macau.
Mesmo o grupo que constitui a grande maioria da população, os chineses de Macau ou “oumunyan”, é composto por uma segunda e terceira geração (em alguns casos a quarta) de chineses do continente que fugiram à Guerra do Pacífico e às atrocidades do exército imperalista japonês. Muitos desconhecem por completo quem foram os seus bisavós, em alguns casos os avós, e outros têm uma atitude de distanciamento da sua origem, rejeitando a terra dos seus ancestrais e resumindo a sua identidade a um passado recente. São de Macau e são chineses, e não se fala mais nisso. Mesmo a teoria de que pertencem à etnia Han, a predominante na China, é discutível. Há quem defenda que estes chineses do sul da China que chegaram a Macau durante o século passado são descendentes de imigrantes do Vietname que se encontravam em grande número na região de Cantão, o que complica ainda mais as contas e deita por terra quaisquer certezas quanto a uma putative “pureza da espécie”.
No fundo Macau, como local de passagem de todo o tipo de representantes de culturas, géneros e origem díspares, tem várias identidades, e ao mesmo tempo nenhuma. Muitas das sementes que germinaram e deram origem aos actuais ocupantes deste espaço foram lançadas de “pacotes” em branco, sem que soubesse muito bem que “colheita” ia ser feita. Não substimo quem se dedica a investigar a eventual identidade única, mas considero que a simples vivência tem mais valor mais estudos elaborados. Dou mais crédito a quem tenha nascido em Macau e aqui habite há 50 anos, do que a quem tenha chegado há um par de anos e “mergulhou” nos papéis à procura de respostas. Eu próprio não me considero uma autoridade, apesar de já ter o meu quinhão de vivências para partilhar. Cheguei apenas há vinte anos, apanhei o comboio em andamento e perdi muitas estações. Para esta discussão só cá estou desde “ontem”. Não me posso dar a esse luxo, pura e simplesmente.
Tenho escutado sempre com atenção e a humildade própria de quem pouco ou nada sabe os testemunhos na primeira pessoa de naturais de Macau já com alguma idade. As memórias destas pessoas têm um valor inestimável, especialmente os de indivíduos da classe média, que conviveram com um certo à vontade tanto com as elites, como com os estratos sociais inferiores. Estes testemunhos são nalguns casos preciosíssimos, e urgem ser transpostos para texto, gravados para a posteridade. Isto é algo que ainda ambiciono fazer um dia, logo que tiver a oportunidade, e assim tentar contribuir sem presunções de espécie alguma para que se encontrem respostas a algumas perguntas que se fazem nesta busca da tal “identidade”. Mas a identidade única, que sirva como um fato feito à medida às gentes de Macau, duvido que alguma vez seja encontrada. Talvez porque não exista. E porque devia de existir? Assim como está tem muito mais piada.
Acredito que a matriz do território continuará a ter na mudança uma constante, mantendo intacta a sua origem obscura. E só espero que continue a contar com todos os tipos de intérpretes, das mais diversas origens, cores e credos. Essa é a verdadeira matriz de Macau: a sua diferença, as misturas únicas no mundo que aqui tiveram o seu laboratório. Uma “salada russa” que se assume e que se orgulha do seu indesvendável passado. Propôr-lhe uma identidade específica significaria quebrar o encanto. Mas da mesma forma que as raízes profundas das árvores da selva amazónica resistem ao progresso imposto pelo bicho homem e rompem o cimento do asfalto, também Macau resistirá a quem lhe imponham rótulos e designações próprias de marcas de origem. Mesmo assim, não perde nada quem quiser tentar; assim aprende mais. Boa sorte, meus amigos.
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