quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Macau ontem: China aqui ao lado


A primeira vez que atravessei a fronteira das Portas do Cerco foi em Dezembro de 1993. Um dia de compras em Zhuhai acompanhado pela mãe e por uma amiga chinesa do continente, com o aliciante de ser a minha primeira visita à República Popular. O que ficava na retina quando se saía de Macau era o imponente arco construído no século XIX e onde se lia: “A Pátria honrai, que a Pátria vos contempla”. Desconheço a autoria de tão inspirada frase, mas duvido que fosse Camões, Pessoa não era certamente e O’Neill não bate assim. Aliás o autor de “Há mar e mar, há ir e voltar” ainda não era nascido nascido na época. Seja como for, fosse eu um patrioteiro de gema e teria-me escorrido uma lágrima do canto do olho, como dizia o Bonga. Não me recordo bem dos procedimentos na saída de Macau, mas lembro-me como se fosse ontem da requisição de visto de entrada na China. Os vistos eram requisitados num pequeno escritório a caminho deGongbei, onde oficiais trajando uniformes folgados de pano verde tratavam os turistas com uma grande dose de arrogância. Depois de preenchidos os papéis e entregues os passaportes, estes eram deixados “a secar” por alguns instantes antes de validados e devolvidos – às vezes atirados – ao destinatário.

Já no outro lado, em Gongbei, era um mundo completamente diferente. O dia estava ensolarado, e na principal avenida depois da fronteira o comércio consistia de aparelhagens de som, produtos falsificados e demais lataria exposta através de uma rua pavimentada de gravilha onde funcionavam lojas cujos artigos eram facilmente negociáveis ao ponto da pechincha. Na altura a pataca era bem mais forte que o renminbi, e podiam-se obter ali mobílias, louças, tecidos ou objectos decorativos ao preço da uva mijona. O que mais me impressionou desta primeira visita foi a pobreza destas gentes, apenas dez anos passados da criação da Zona Económica Especial, idealizada por Deng Xiaoping. Era comum encontrar pedintes e prostitutas, e mesmo as mulheres que exerciam profissões consideradas dignas trajavam conjuntos que no total custariam cerca de 20 patacas, pelo câmbio de então. Almoçámos por lá, mesmo sem a certeza de ser uma opção segura, mas passados quase vinte anos aqui estou, pelo que valeu a pena arriscar.

Actualmente é completamente diferente passar a fronteira para o outro lado. O monumento que nos apela a “honrar a Pátria” mantem-se – por ser património, suponho – mas o posto fronteiriço é agora uma infra-estrutura moderna, funcional, preparada para dezenas de milhar de pessoas que vão e vêm diariamente. Sair de Macau é uma questão de minutos, e passar para Gongbei é igualmente rápido, com as excepções que já todos sabemos, do Ano Novo Chinês e das restantes “semanas douradas”. Mesmo a obtenção do visto, para quem não tem o salvo-conduto, já não é o que era. Os oficiais são muito mais expeditos e educados, uniformes bem mais catitas, e pasme-se, alguns falam inglês e tudo! E já não se atiram os passaportes nem se fazem caras de “mau”. Aliás é frequente deparar com pessoas a reclamar na alfândega com os oficiais chineses (e às vezes por bagatelas), algo que muitos não imaginariam ser possível. A imagem do oficial de alfândega chinês sofreu um “make-over” em termos de relações públicas, e não existe mais a imagem rígida e autoritária de quem controla a entrada num país fechado. A paciência e a simpatia são qualidades com que estas autoridades se dotaram nos últimos anos.

O desenvolvimento da própria cidade de Zhuhai é verdadeiramente espantoso. Longe vão os tempos das ruas de terra batida, é tudo muito mais modernizado, não faltam hotéis, restaurantes, cafés e outro comércio que satisfaçam as exigências mínimas, e a diferença em termos de limpeza salta à vista. A cidade vizinha tem agora a cara lavada, e foi mesmo considerada há pouco tempo uma das dez cidades mais românticas da China. A valorização do renminbi tornou a vida um pouco mais cara, mas ainda vale pena ir às compras e sentir a diferença. Tornou-se tão atractiva que muitos residentes da RAEM resolveram ir para lá viver, pois a habitação é muito mais em conta, e o tempo que demora a passar de um lado para o outro da fronteira não é impeditivo – chega a ser mais prático e rápido trabalhar em Macau e viver em Zhuhai do que trabalhar em Lisboa e viver na Amadora, por exemplo. Muitos dos noctívagos macaenses optam por ir ali “fazer a festa” e voltar à RAEM na manhã seguinte. A vida nocturna em Zhuhai granjeou uma certa fama, e além de mais barata as opções são mais variadas. E mais divertidas, dizem. Existem algumas arestas por limar, contudo; o simples facto de atravessar a rua é uma aventura (Macau também está diferente para pior neste aspecto), e há pequenos detalhes que ainda denunciam alguns vícios da velha China: a higiene nas casas-de-banho públicas, por exemplo ou alguma miséria ainda visível à luz do dia, para citar dois exemplos. No outro dia entrei lá numa padaria e junto dos “hot-dogs” estava uma placa onde se lia em inglês “german intestinal bread”. Assim não é tão convidativo. São pequenos detalhes, como já referi, e pouco a pouco se vai melhorando.

A fronteira funciona entre as 7 da manhã e a meia-noite, e fala-se da possibilidade de a manter aberta 24 horas por dia. É uma inevatibilidade, mais cedo ou mais tarde, até porque não implicaria um esforço significativo em termos logísticos e humanos. É apenas uma questão de vontade. Quando isto acontecer, a grande China ficará mais perto, e Macau arriscar-se-á a “perder” para Zhuhai em muitos aspectos. Quem viu há vinte anos aquela cidade que um dia Deng escolheu para Zona Económica Especial e olha para ela agora, percebe que ali se arregaçaram as mangas e foi feito um excelente trabalho. É muito mais limpo, bem mais seguro e nota-se uma grande vontade dos seus residentes em agradar. Os estrangeiros, especialmente, são recebidos com muita simpatia. Dá gosto visitar Zhuhai, e talvez dali pudessemos aprender qualquer coisa.

1 comentário:

João Botas disse...

“A Pátria honrai que a Pátria vos contempla” é a divisa da Marinha portuguesa desde Março de 1863. Na década de 1990 durante obras de restauro da Porta do Cerco até houve uma troca na ordem das palavras... Uma 'gaffe' que entretanto foi solucionada.