Assisti no outro dia a um episódio da série “E Depois do Adeus”, a tal que referi aqui há algumas semanas, e cuja acção decorre durante o Verão Quente de 1975, o período mais conturbado do PREC (Processo Revolucionário Em Curso), que se seguiu ao 25 de Abril de 1974. Foi uma época em que se cometeram todos os tipos de excessos, quiçá resultantes de um certo deslumbramento pela liberdade recentemente adquirida depois de quase cinco décadas de ditadura. Foi o “saltar da tampa” de uma garrafa que foi aguentando o gás durante muito tempo, e as pessoas não sabiam muito bem o que fazer com essa liberdade. Arriscámo-nos mesmo a cair noutra ditadura, não fosse outra intervenção militar poucos meses depois, a 25 de Novembro, que colocou alguma ordem e evitou uma provável Guerra Civil ou uma intervenção estrangeira no sentido de evitar que Portugal se tornasse num país socialista de inspiração soviete. Foram tempos complicados, e ainda bem que tinha pouco mais de seis meses de idade, senão emigrava. Assim ainda precisei de esperar mais 18 anos.
A série está impecavelmente bem pensada e é competentemente produzida, e quem passou por estes loucos tempos identifica-se com grande parte do enredo. Uma família de retornados (ou “refugiados” como se auto-intitulavam) deixa Angola à pressa e vai morar com a irmã do seu patriarca, que se debate com dificuldades em encontrar emprego, uma vez que é considerado um “colonialista” que passou a vida “a explorar os pretos”. Num mercado de trabalho onde os sindicatos ditavam as regras, um retornado batia quase sempre com o nariz na porta. Era mais uma angústia a juntar ao choque que foi perder tudo num ápice, graças a uma descolonização vergonhosa feita em cima do joelho. A adaptação a um país completamente desconhecido era difícil, especialmente num tempo de muita incerteza quanto ao rumo que esse país ia tomar.
Uma grande parte da população urbana da capital, especialmente a mais jovem, estava entretida com uma qualquer ideologia a que chamava “luta”. As palavras que mais se ouviam eram “burguesia” (o inimigo), “proletariado” (o povo, pá!), “luta de classes” (o desporto nacional de então) ou “reaccionários” (os inimigos da revolução). Os comunas mais radicais entretinham-se a participar em comícios, a imprimir folhetos ou a pintar paredes – tudo o que não fosse trabalhar ou estudar, claro. Os ideólogos de onde se bebia a inspiração eram Marx, Lenine, Estaline e Mao. O Governo era liderado pelo comunista Vasco Gonçalves, enquanto o líder histórico dos comunas tugas, Álvaro Cunhal, entretinha-se a vender segredos de estado a Moscovo. Vejam só em que sarilho estávamos metidos.
Os portugueses, outrora oprimidos ao ponto do esmagamento pela União Nacional, o partido único do regime fascista, dividiram-se em mil partidos, e além dos “reaccionários” do PPD e do CDS e dos moderados do PS, existia o PCP e uma miríade de sucedâneos comunistas, de onde se destacavam a UDP e o MRPP como os mais radicais. Este é o povo que temos. Em vez de aprender com os erros do passado e tentar organizar-se de modo a construír um país democrático com uma orientação liberal, optou pelo extremo oposto do regime que os oprimiu. É caso para dizer que só estavam contentes com a lei do chicote. E queriam um chicote novo, diferente do anterior.
Voltando à série, uma cena que me chamou a atenção aconteceu dentro de um autocarro que terminava a carreira no Cais do Sodré. Os passageiros queriam ir até ao Terreiro do Paço, e alguns mesmo até Santa Apolónia, porque moravam lá perto e “dava jeito”. O motorista insistia na carreira normal, mas o revisor discordava, pois “os operários querem ir até ao Terreiro do Paço, e a vontade dos operários deve ser feita”. A discussão foi sujeita a “plenário” e de seguida “votada”, de modo a obter uma solução “democrática”. Mal sabia esta gente que este tipo de comportamento tinha muito pouco de democrático. Era uma autêntica loucura. A mais elementar subversão de valores, mesmo que improdutiva, era tida como um assomo de liberdade.
Gostei do cuidado com os adereços. As roupas, os penteados, as músicas e até os carros compõem o cenário que nos levam atrás no tempo quase 40 anos, para a idade das calças de boca-de-sino, dos cabelos compridos, dos bigodes farfalhudos e das barbas fartas. Junto com a revolução chegou a falência dos barbeiros. Quem mais lucrou com toda esta fantochada foram os músicos de intervenção, como Fernando Tordo, Sérgio Godinho, Fausto, Vitorino, José Mário Branco e outros que alinhavam no “espírito revolucionário”, uns que se afirmavam depois de anos na clandestinidade, outros que iam então aparecendo. O Festival da Canção de 1975, o primeiro depois da revolução, foi uma autêntica parada de canções revolucionárias, e do mal o menos, ganhou “Madrugada” de Duarte Mendes, uma das menos radicais (e menos ridículas). Ora mas tudo isto até faz algum sentido: se a ditadura durou 48 anos, a revolução devia durar pelo menos outros 48. As nacionalizações, as expropriações, os atentados bombistas, as greves e outras formas de anarquia eram produto da “vontade do povo”, que agora unido, jamais seria vencido.
Estou um pouco surpreendido que se tenha demorado tanto tempo a retratar este período tão único da nossa História recente. Quer dizer, conseguimos produzir séries televisivas de inspiração histórica com muita qualidade, e assim de repente lembro-me de “Bocage”, “O Processo dos Távoras”, “A Ferreirinha” ou “Ballet Rose”, e admira-me que só agora se lembrem de explorar este tema tão sumarento que foi o PREC. Quem sabe se a ideia andou a ser amadurecida e chegou o “timing” adequado. (Ou se calhar o Francisco Moita Flores é uma formiguinha burguesa, um reaccionário!). Ficamos agora à espera que a TDM transmita a série a horas decentes o mais brevemente possível, pois às cinco da madrugada de Domingo é difícil que a consigamos acompanhar aqui deste lado. Em todo o caso fica o registo. É uma série de grande qualidade e que vale a pena ver. E aprender.
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