Comemora-se hoje o Natal, e o mundo cristão celebra mais uma vez o nascimento do seu Messias, Jesus Cristo. Antes de mais nada, um Feliz Natal para todos, e continuação de boas festas, que na tradição católica só terão o seu fim no próximo dia 6, Dia de Reis. São mais doze dias até ao final desta quadra, e esperam-nos depois mais dois meses e meio de Inverno, até que a natureza cumpra mais uma vez o seu ciclo e se renove, brindando-nos com as suas novas flores e frutos, uma nova vida, cuja semente por enquanto hiberna.
Mas falemos deste dia, 25 de Dezembro, em que se comemora Santa Anastácia de Sirmium, grande mártir das poções, e o “aniversário” de Jesus Cristo, o Salvador, filho de Deus, o feriado mais importante do calendário católico. O mistério da Natividade é um tema fascinante. Apesar de se assinalar o nascimento de Cristo, é um dado adquirido que não terá sido exactamente nesta data que nasceu o Messias. Teólogos e académicos não têm uma data concreta para o seu nascimento, que terá ocorrido “no Inverno”, e “depois do solstício”, que ocorreu há cinco dias. Recentemente o Papa Bento XVI anunciou que o burro e a vaca que figuram do Presépio “não teriam estado presentes no nascimento de Cristo”, uma afirmação baseada alegadamente numa conclusão pessoal que foi recebida com uma certa dose de humor. Já lá vamos. Mas existem outras dúvidas a respeito da Natividade, além da presença dos dois animais, que geram discussão e não reúnem consenso.
A fé cristã acredita que Jesus era filho de Deus, foi concebido sem pecado no ventre da sua mãe Maria, criado por esta e pelo seu marido José da Arimateia, seu pai adoptivo. Segundo o evangelho de Lucas no Novo Testamento, Maria, uma judia da tribo dos israelitas, recebeu a visita do arcanjo Gabriel anunciando tinha sido escolhida para ser mãe do filho de Deus, e que o chamaria de “Jesus”, devendo aguardar a visita do Espírito Santo, que a “cobriria com a sombra do altissimo”. E assim foi feita a Sua vontade. José, ao saber que sua mulher Maria estava grávida “sem que nunca tenham coabitado”, deixou-a em segredo, pois o castigo destinado às mulheres adúlteras era a lapidação. Foi aí que um anjo o visitou em sonho, anunciando o plano divino, e tudo voltou a ser como antes. Em vésperas de Maria dar à luz, o imperador César Augusto decretou um recenseamento na Judeia romana, e José levou a família à sua terra natal, Belém, para esse efeito.
Enquanto lá estava, Maria deu à luz, e por falta de lugar na hospedaria onde tinham ficado, o recém-nascido foi colocado na manjedoura de um estábulo ou gruta ali próxima. Um anjo anunciou a boa nova a um grupo de pastores que guardavam os rebanhos durante a noite nos campos próximos de Belém: nasceu o Salvador. Uma milícia celestial surgiu nos céus cantando louvores a Deus e ao menino Seu filho, e os pastores ocorreram ao estábulo ou gruta onde estava o menino deitado na manjedoura, para o adorar. Oito dias depois, Jesus foi apresentado ao Templo em Jerusalém e circuncisado de acordo com a tradição judaica, e foram sacrificados dois pombos e duas rolas para assinalar a apresentação do primogénito de Maria. Esta é a descrição da Natividade dada pelo segundo livro de Lucas.
No evangelho de Mateus faz-se referência aos sábios zoroastras que chegaram a Jerusalém vindos “de terras do Oriente” – mais precisamente da Pérsia, berço do zoroastrismo. Eram supostamente astrólogos, leram nas estrelas o nascimento do Salvador, e vinham adorá-lo. Muitas versões mais conhecidas defendem que “três reis magos vieram presentear e adorar o recém-nascido”. É um facto que o presentearam com ouro, incenso e mirra, mas nunca é feita nenhuma referência de que seriam reis, ou sequer três – essa asserção é derivada do número de presentes. Nem sequer terão conseguido chegar de camelo da Pérsia (actual Irão) a Belém (Israel) no mesmo dia que leram sobre o nascimento de Jesus nas estrelas. Mateus diz-nos que os sábios “procuravam o menino que acabara de nascer”, mas isto poderá ter decorrido semanas depois do nascimento. A data que o calendário civil assinala é 6 de Janeiro, doze dias depois da Natividade, como já referi, mas poderá ter sido outra. A tradição diz que se chamavam Gaspar, Baltasar e Melchior, mas a Bíblia não faz qualquer menção dos seus nomes.
O presépio clássico é a representação por excelência da Natividade, e tenta recriar uma imagem dos primeiros momentos da vida de Jesus. O primeiro presépio de que se tem conhecimento foi montado por S. Francisco de Assis no Natal de 1223, e feito em argila. Durante o Renascimento os Presépios chegavam a ter mais de cem figuras (!?), mas os convencionais são compostos por Maria, José, a vaca, o burro, os “reis magos”, a estrela de Belém que os teria guiado, colocada no topo da gruta ou estábulo onde Jesus se encontra, na manjedoura, deitado sobre as palhas. É comum aparecerem alguns personagens secundários: os pastores que vieram adorar o menino, e o anjo (ou mais anjos) que lhes anunciou a boa nova, mais um outro cão que guardava os rebanhos, uma ou mais ovelhas, todos elementos facultativos desta composição.
Muito pouco do que compõe esta imagem pode ser comprovado. Como já referi, é improvável que os sábios (que aparecem coroados nos presépios, o que explica que se pense que eram de facto reis) estivessem ali na mesma altura que os pastores. É verdade que a manjedoura é referida no evangelho, mas não é garantido que Jesus fora deitado nas palhas – não faz muito sentido que um recém-nascido e filho de Deus fosse negligenciado desse jeito. O provável é que tivesse sido improvisado um leito feito de estopa, como era costume na época. Também não é credível que Maria tenha dado à luz no estábulo ou na gruta onde Jesus se encontrava quando foi visitado, e desconhece-se quem a poderá ter assistido no parto – é difícil de acreditar que tenha feito tudo sozinha, ou apenas com a ajuda do marido. A vaca e o burro poderão mesmo estar ali a mais, como defende o Papa; apesar de se tratar de um lugar destinado a guardar animais, não significa que estivesse ali algum naquele dia. A vaca e o burro poderão ter sido adicionados para sublinhar a origem humilde de Jesus, que “nasceu entre os animais, e não num palácio!”, como li algures durante a pesquisa que fiz sobre este tema. A estrela tem uma componente simbólica, pois não estaria ali parada a posar para a fotografia. Quanto aos anjos, bem, isso acredita quem quiser. Como estou a fazer um esforço para tentar compôr de forma mais aproximada possível um cenário realista, assumindo que Jesus nasceu nestas circunstâncias, então deixo os anjinhos de fora. Desculpem lá.
Mas recuando um pouco até à Imaculada Conceição. Esta boa nova é anunciada a Maria pelo Arcanjo Gabriel, um personagem misterioso que também havia anunciado a Ezequias e Isabel que seriam abençoados com um filho, que viria a ser o nosso conhecido S. João Baptista. Segundo a Bíblia hebraica, no livro de Daniel, o mesmo Gabriel havia sido enviado por Deus a este profeta durante o cativeiro dos judeus na Babilónia, para interpreter os seus sonhos. Mas Daniel não se refere a ele como um anjo, mas como “o homem Gabriel”. Ainda na mesma escritura é referido no livro de Ezequiel como “o anjo da morte” enviado para destruir Jerusalém, e é ainda mencionado no Talmude e na Cabala, outros dois livros sagrados da religião judaica. A Igreja de Jesus Cristo e os Santos dos Últimos Dias, vulgo “mormon”, acredita que Gabriel terá vivido uma vida mortal como…Noé. Sim, o profeta da famosa arca. Mas é no Islão que este mensageiro predilecto de Deus leva a cabo a sua tarefa mais épica, ao anunciar durante 23 dias o Alcorão ao profeta Maomé. Este arcanjo Gabriel é portanto comum às três principais religiões abraãmicas que têm em Jerusalém a sua cidade santa: judaismo, cristianismo e islamismo. Perdoem a minha ignorância típica dos não-crentes, mas não consigo entender que o mesmo Deus, o Deus único, mande o mesmo mensageiro anunciar a Maria a vinda do futuro Messias cristão, e depois ditar a Maomé os preceitos da fé islâmica. Não sendo eu um estudioso da teologia, fico à espera que alguém me apresente uma explicação, em vez de se limitar a relembrar a minha brutal ignorância, que já assumi. Não acredito que alguma religião esteja “mais certa” que as restantes, mas vamos supôr que Deus existe mesmo. Qual é a Sua motivação para esta falta de coerência, que divide quem Nele acredita e lança a confusão? Faz parte do Seu plano que não exista uma religião unificada? Mas pronto, esta é uma pergunta que vai ficar sem resposta, pelo menos para mim.
É um dado adquirido que Jesus Cristo existiu, que foi carpinteiro judeu na Galileia, baptizado por João Baptista no rio Jordão, altura que deu início ao seu ministério, por volta dos 30 anos de idade, e crucificado em Jerusalém por ordem do Governador romano Pôncio Pilatos, que o considerava um “agitador perigoso”. Existem algumas dúvidas sobre o ano exacto do nascimento e da morte de Jesus, e só se pode afirmar com toda a certeza que terá vivido entre 28 e 34 anos. O que se consegue provar do Jesus histórico é mais do que se sabe ao certo do Jesus divino. Além da concepção imaculada pelo Espírito Santo, a Igreja acredita ainda que Jesus possuía poderes sobrenaturais conferidos pela sua ascendência divina; curava os cegos, leprosos e demais enfermos pela simples imposição de mãos, realizava milagres, andava sobre as águas, e após um penoso martírio em nome da expiação dos pecados do mundo, ressuscitou três dias depois da sua morte, tendo subido aos céus, onde hoje se encontra à direita do Pai. Do pai original, ou seja, de Deus. Estas crenças são fundamentadas pelos evangelhos, onde o próprio Jesus Cristo transmite na primeira pessoa alguns dos ensinamentos da doutrina que fundou e que recebeu o seu nome, a cristã. Estes são os dogmas da Igreja, e como agnóstico não me compete refutá-los nem duvidar da sua legitimidade. Pode ser verdade, é possível. Mas não se consegue provar, nem afirmar como sendo uma verdade acima de qualquer suspeita.
E falando de suspeitas, as próprias incidências da vida de Cristo e o seu lado divino encontram paralelo noutras divindades anteriores a ele. O deus Horus, da mitologia egípcia e adorado há 4500 anos, foi concebido pela deusa Ibis, uma virgem, realizava milagres, curava os doentes, restituia a visão aos cegos, caminhava sobre as águas, foi martirizado, desceu aos infernos de onde ressuscitou três dias depois e ascendeu aos céus. Coincidência? Átis de Frígia, da mitologia grega, terá vivido há 3200 anos, concebido também por uma virgem, e nascido a 25 de Dezembro. O seu corpo era feito de pão que era comido pelos seus seguidores. Foi crucificado numa árvore a uma sexta-feira, e o sangue que derramou redimiu o mundo dos seus males. Rescuscitou três dias depois. Parece familiar? Um exemplo mais distante: o deus hindu Krishna, concebido de forma assexuada através de “transmissão mental”. À semelhança de Jesus, era humano, curava os doentes, incluíndo leprosos, ressuscitava os mortos, tinha discípulos com quem realizou uma última ceia antes de ter sido crucificado e posteriormente ressuscitado. Krishna era uma divindade já adorada na Índia quatro séculos antes do nascimento de Cristo. Zaratustra, ou Zoroastro, profeta persa que viveu à 6 mil anos, foi concebido “por um raio de razão celestial”, foi baptizado num rio, devolvia a visão aos cegos, pregou sobre conceitos como o céu e o inferno, e mistérios como a ressurreição, o julgamento final e o apocalipse. Os seguidores do zoroastrismo – onde se incluíam os tais sábios que visitaram Jesus – acreditam no retorno do seu profeta daqui a 300 anos. Isto são todos factos facilmente verificáveis. É lógico que pertencendo algumas destas divindades à esfera da mitologia, é normal que a sua génese e existência sejam marcadas por relatos fantásticos e personagens antropomórficas, mas todos os elementos estão presentes de um forma ou outra: ascendência divina, concepção imaculada, poderes sobrenaturais, martírio, ressurreição e ascensão. Isto não significa necessariamente que a doutrina cristã ou os seus dogmas são baseados em falsidades ou não passam de um plágio; significa apenas que o lado divino de Jesus se encaixava na definição do divino daquele tempo: características próprias dos deuses, que os diferenciavam dos restantes mortais.
Não há dia mais indicado que um dia santo para discutir religião. Aliás qualquer dia é um bom dia para que se procurem esclarecer dúvidas e tentar encontrar respostas. Se realmente é verdade que existe um fim, um destino final, um desígnio divino que nos levou a este mundo, convém que pelo menos tentemos ficar o mais perto possível das respostas às dúvidas que são inerentes à nossa própria existência. Um dia vamos partir, mas não sem primeiro dar luta e tentar pelo menos perceber qualquer coisinha que não se resuma a cumprir a trindade do nascimento/vida/morte, e esperar um prémio pelo incómodo na forma de “repouso eterno”. A mim sabe-me a pouco. São tantas as vezes que não ousamos questionar o plano de Deus, mesmo que durante as nossas breves vidas nos sujeitemos a tantos sacrifícios e momentos dolorosos que tentamos justificar como sendo a Sua vontade, e que as cruzes que carregamos servem o Seu propósito. Vamos então aproveitar os últimos dias desta quadra carregada de mistério e misticismo. Não tenhamos pudor em tentar saber mais, mesmo que isso signifique questionar a rigidez dos dogmas e das imposições. Vão em paz, e atrevam-se a sonhar com as respostas.