sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Serpente bate-me à porta


Para quem ainda não leu, aqui fica o artigo da edição de ontem do Hoje Macau.

Está aí à porta o Ano Novo Chinês, a data mais importante do calendário lunar, altura em que ciclo do zodíaco completa mais uma volta, e desta feita a Serpente vem ocupar o lugar do mítico Dragão. Já se começa a sentir o clima festivo, e as celebrações começam no final desta semana – sexta-feira, dia 8 é o penúltimo dia do actual ano lunar. Domingo, dia 10, é o primeiro dia do Ano da Serpente, e os funcionários públicos gozam de licença até quarta-feira, dia em que foi atribuída tolerância de ponto. Esta é a vigésima vez que celebro esta data no território, e a segunda vez que assisto à chegada da Serpente, depois de 2001. Assim como eu, muitos outros expatriados não são “virgens” nestas lides do Ano Novo Chinês, e em alguns casos já sabemos de trás para a frente as tradições, procedimentos, superstições e tudo mais. Mas que conselhos daria eu a quem passa este período por estas bandas pela primeira vez? É essa a minha proposta para este artigo, sem qualquer tipo de presunção ou vaidade.

Eu próprio não me considero um especialista, mas os dias que se seguem podem causar alguma estranheza a alguns. A atitude primária a adoptar é a de respeito: espere o inesperado, sorria e seja simpático, pois esta é uma época que se quer próspera e tentam-se todas as formas de atrair a boa sorte. Tentam-se evitar os conflitos e chamar as forças negativas que depois nos podem acompanhar durante todo o ano. Mesmo quem não acredite em superstições ou despreze as tradições pagãs deve adoptar um comportamento passivo. Afinal não custa nada, são apenas alguns dias.

Este é um período curioso do calendário civil, onde os desejos de “bom ano” se confundem entre a chegada de 2013 e a proximidade do Ano Novo Lunar. Para quem quer desejar bom ano sem pensar muito nas convenções, o melhor mesmo é usar “san nin fai lok” (Feliz ano novo), que serve para as duas passagens. Quem quiser arrancar um sorriso dos nativos, o ideal será dizer “Kung Hei Fat Choi”, ou “Feliz ano novo lunar”, e já agora acrescentar um “San Tai Kin Hong”, desejos de saúde e prosperidade. Desejar saúde a alguém é sempre simpático.

Os lares chineses mais fiéis à tradição cumprem um ritual que passa por limpar a casa ou deitar fora o lixo e as coisas usadas que não têm mais utilidade, e existe mesmo um dia destinado a esse efeito. Não me perguntem qual, pois para mim qualquer dia é um bom dia para limpar a casa ou deitar fora o lixo. Contudo existem preceitos que todos cumprem com alguma insistência, normalmente aqueles que poderão trazer boa sorte ou afastar o azar. Mesmo quem não acredita nos caprichos da lua cumpre estes preceitos, pois como diz sabiamente o povo, “não acredito em bruxas, mas que as há, há”, ou numa versão mais sóbria, “o seguro morreu de velho”.

Assim ninguém compra sapatos durante os dias próximos do Ano Novo, e mesmo durante algum tempo depois (depende da convicção). Porquê? Porque sapatos em chinês diz-se “hai”, que é dito no mesmo tom que se diz “ai”, como quando acontece alguma desgraça. Caso precise urgentemente de comprar sapatos durante esta data, existem sapatarias abertas, lógico, mas é recomendável guardar a aquisição dos novos chaços para uma data posterior, não vá o Diabo tecê-las. Também não se compram ou oferecem livros, pois o chinês “sü” de “livro” assemelha-se à palavra chinesa para “perder”. As livrarias estão fechadas durante os feriados, provavelmente, mas ninguém o impede de comprar um livro. Não espere é uma grande procura pela literatura nesta época, pois ninguém quer começar o ano a perder, obviamente.

Por falar em perder, é nestes dias do Ano Novo que os casinos rebentam pelas costuras – é a “high season” do jogo em Macau. Os chineses acreditam que a sorte lhes sorri especialmente no novo ano, mas todos sabemos que são as concessionárias do jogo quem mais beneficia com essa “ boa fortuna”, e a rodos. Aos funcionários públicos está vedado o acesso a salas de fortuna e azar durante todo o ano, fruto de um acordo antigo entre a administração e a STDM (actual SJM), justificada pelo facto da administração receber impostos das receitas dos casinos. Apenas os funcionários da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos têm acesso às salas de jogo, onde é suposto fiscalizarem o cumprimento desta regra, entre outras tarefas. Independentemente da maior ou menor imposição desta proibição, os funcionários gozam de um regime de excepção durante os três dias do Ano Novo Lunar, e podem fazer a sua apostazinha (ou duas, ou dez, ou cem) sem temer um procedimento disciplinar.

O Ano Novo é altura para as famílias se reunirem, conviver ou jogar “mahjong” juntos (o que normalmente fazem durante horas a fio; um detalhe: não toque no ombro de quem está a jogar “mahjong”, pois dá azar!). Os solteiros recebem dos mais velhos e dos casados um envelope vermelho conhecido por “lai-si”, que contém dinheiro, normalmente em papel-moeda. O valor é o que menos importa, pois mesmo 10 patacas que se recebam são consideradas “dinheiro sortudo”. Há alguns anos as notas de dez patacas foram retiradas de circulação e substituídas por moedas, decisão mal acolhida entre a população, que assim se via obrigada a oferecer “lai-si” no mínimo de vinte patacas. A administração, naquele tempo ainda a portuguesa, recuou na decisão e reabilitou as notas de dez. Apesar do valor do “lai-si” ser o que menos importa em matéria de sorte, é normal oferecerem-se quantias mais elevadas aos elementos mais próximos da família, na ordem das 500, 1000 ou mais patacas, dependendo do parentesco ou das posses da família. Como a inflação tem tocado a todos, hoje é comum oferecerem-se dois envelopes em vez de um. Já não é bem visto oferecer apenas um “lai-si” de dez patacas, mesmo a um desconhecido.

As famílias reúnem-se e nem sempre apenas em casa. É habitual juntarem-se à mesa dos restaurantes que servem uma série de pratos sazonais, e até nesse particular existe um protocolo que os menos experientes devem evitar quebrar. Tal como na indústria do jogo, o Ano Novo Chinês é um período de grande buliço para a indústria da restauração, as reservas para os melhores restaurantes são feitas com alguma antecedência, e não é muito sensato reservar no próprio dia. Os serviços públicos e empresas particulares organizam jantares de Ano Novo para os seus trabalhadores, e as reservas chegam a ser feitas com um mês de antecedência, ou mais. Conscientes disso, os restaurantes da especialidade colocam o menu e o preçário à disposição com a mesma antecedência. Quanto ao que se come nestes jantares, bem, depende do gosto, mas quem não despreza de todo a culinária chinesa não vai passar fome. E não são servidos “pratos esquisitos” nem nada de completamente intragável, como muitos gostam de fazer crer.

As semanas que antecedem o Ano Novo Chinês são marcadas por uma intensa movimentação de pessoas na China, uma vez que para muitos trabalhadores migrantes esta é a única altura do ano civil em que gozam férias. Em Macau são muitos os residentes que aproveitam para visitar a terra natal ou a terra dos seus ancestrais, e em alguns casos muito do comércio encerra durante uma semana ou mais. Este é um fenómeno que chegou a causar algum incómodo no passado, mas actualmente com a proliferação dos grandes espaços comerciais nota-se mesmo a escassez de produtos de consumo – é completamente falso que “está tudo fechado” nestes dias. Contudo algum comércio, especialmente o da restauração, aumenta os preços por esta altura, muito por culpa da dificuldade em obter matéria-prima do continente. É recomendável encher o congelador durante este período e estar prevenido pelo menos durante a semana mais crítica. Caso se contente com pouco, fique sabendo que os restaurantes da cadeia McDonald’s funcionam a um ritmo normal durante os feriados.

Uma curiosidade prende-se com o preço dos salões de cabeleireiro, que duplicam ou até triplicam os preços durante este período. Conscientes disto, poucos são os que escolhem o Ano Novo para “ir ao baeta”, pelo que se recomenda ir antes. Uma situação que causa algum transtorno é a falta de dinheiro nas caixas automáticas; os bancos encerram na sexta-feira e reabrem apenas cinco dias depois, pelo que convém fazer um levantamento mais avultado antes das férias. Este é um problema que já foi mais grave, e actualmente os bancos reforçam o recheio das caixas no último dia do Ano lunar. Outro aspecto negativo é a forma muito particular que os chineses encontraram para espantar os maus espíritos que se querem bem longe durante a chegada do novo ano. Para o efeito rebentam-se panchões, um cordão de explosivos que rebenta durante quase um minuto provocando um ruído estridente e espalhando tiras de papel vermelho pela calçada. É impossível prever o local e a hora do rebentamento durante a época do Ano Novo Chinês.

Há quem não ache piada ao festival e resolva sair do território por uns dias, buscando outras paragens onde não se sujeite a tudo isto. Só que onde há chineses, comemora-se o Ano Novo Chinês, e caso a opção de viagem seja dentro da Ásia, isto torna-se ainda mais evidente. Se este é o seu primeiro Ano Novo Chinês passado aqui na China, divirta-se, aprenda e já agora aproveite para brincar. É uma festividade que tem mais em comum com o nosso Carnaval do que com a entrada do Ano Novo civil. Aproveite para desfrutar do ambiente de alegria que reina na cidade, e já agora dê um pulinho até aos casinos ver como é que esta máquina que é Macau anda para a frente. E já agora “Kung Hei Fat Choi” para si também.

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