Prefácio
Inspirado por alguns dos interessantíssimos comentários que recebi a temas relacionados com o futebol, resolvi dedicar uma posta a um dos males que mina a nossa nação: o clubismo. Não é fácil, pois quando se tenta fazer uma crítica independente a um tema tão querido dos portugueses, há quem não concorde e faça questão de demonstrá-lo, nem sempre da forma mais diplomática. Não tenho a intenção de magoar ninguém, ou fazer generalizações ou análises redutoras. Enfia a carapuça quem quiser. Esta posta é uma tentativa de humorismo (já sei, não tenho piada nenhuma), portanto gostaria que os leitores a levassem na desportiva. Posto isto...
LeocardoCostumava o meu pai dizer que “à mesa não se fala de religião ou política”. Mas de futebol tudo bem, falava-se pelos cotovelos. A minha família era toda,
helas, benfiquista. Não sendo eu benfiquista, sportinguista, portista ou porra nenhuma, os dias em que havia futebol serviam apenas para estudar de perto o comportamento do
homos futebolisticus ao assistir àquele bailado selvagem que são onze contra onze a correr atrás de uma bola.
Em vésperas de um Benfica-Sporting – como hoje – não se falava de outra coisa. Nem depois. Fosse qual fosse o resultado, alguém se ficava a rir, e outros estranhamente carrancudos. O meu vizinho Joaquim, que era de Rio Maior, dizia que “só queria saber do seu União”. Claro que nas tertúlias era sempre posto de parte ou objecto de galhofa, como se fosse extraterrestre. Era quase tido como um louco. Mesmo os dirigentes são assim; o presidente de um clube distrital pode ir com um ar carregado anunciar o fim do clube, mas a seguir ir pagar a cota de sócio de um dos três grandes nacionais.
Se os benfiquistas são seis milhões (é bem possível, a julgar pela quantidade de gente deprimida no país), os restantes quatro milhões são do Porto e do Sporting. São os BPS (benfiquistas/portistas/sportinguistas), que constituem 99.9% da população portuguesa (os outros 0.1% são uma margem de erro). Mesmo os que se dizem adeptos dos outros clubes, do Guimarães, do Braga, do Belenenses, e mesmo os orgulhosamente insulares da Madeira, são uns enormíssimos BPSs camuflados. Há um grupinho a que acho uma graça enorme: os "estudantes". Dizem-se adeptos da Académica porque estudaram em Coimbra (ai aquela vida, lembras-te, pá?) ou noutra universidade qualquer, mas estão-se nas tintas para ela quando joga um dos seus BPS.
Basta ver os jogos do tipo Braga-Benfica, ou Penafiel-Porto, se acabam 2-2, metade dos adeptos no Estádio festejam os quatro golos, sendo que a outra metade pertence a um BPS inimigo.
Os BPS são os expeditores da glória desportiva. Um adepto de Setúbal que garanta a pés juntos que só gosta do seu “Vitórria”, é lá no fundo um BPS recalcado que sofre com um dos BPSs todos os Domingos. A Taça de Portugal é um bom exemplo disso. Lembro-me há uns anos um dirigente de um clube dos escalões secundários ter dito em vésperas de receber um dos grandes que "queria vencer para ajudar o Benfica".
O clubismo é um cancro nacional. Separa os melhores dos amigos, gera discussões bacocas entre colegas, é só do que se fala quando não há nada para falar (e quase sempre não há!). Qualquer BPS mais pacato começa a levantar a voz e o dedo quando começa a falar de futebol com um BPS inimigo. Ao contrário das religiões, que não se enfrentam todos os fins-de-semana em busca de um troféu (pelo menos não nos mesmos moldes), aqui a rivalidade é renovada a cada jogo, a cada semana, a cada título. Cada um dos BPS é especial na sua maneira de ser.
O benfiquista é o mais orgulhoso. Há benfiquistas de toda a espécie e feitio: ministros, advogados, trolhas, domésticas, beatas, arrumadores, tudo. Há benfiquistas alentejanos, beirãos, portuenses, do Minho até Timor, como dizia o outro.
O Benfica é a United Colors of Benetton do clubismo. Podem ser óptimas pessoas, boazinhas, porreiríssimas, mas passam-se dos carretos quando alguém fala mal do seu clube. Todos sabem de cor os hinos do Benfica, têm um pratinho que diz “quem não é do Benfica não é bom pai de família”, arrepiam-se quando vêem o Eusébio e o Rui Costa a chorar. Produzem resmas de poesia e prosa de casca grossa para definir "o que é ser benfiquista", que começa quase sempre por "é uma coisa inexplicável". São tão agressivos quanto os portistas, têm ambos mau perder, e isto porque ambos pensam que existe uma guerra norte-sul, em que a deslocação para cada um dos campos de batalha se faz de carro em duas horas.
Os portistas são gente desconfiada (“este morcone não é do Norte, carago), orgulhosa, que um dia arregaçou as mangas e resolveu pôr um fim ao domínio da capital.
São os anti-imperialistas do clubismo. Olham para o Benfica de cima, e riem com tom sarcástico das coisas que os acusam. Para o portista, que ri na cara do perigo, "as contas fazem-se no fim". E têm sabido fazer bem as contas. Pinto da Costa aparece assim numa aura estranha, de santidade como o Papa, de revolucionário como Che, de padrinho como Vito Corleone com um culto da personalidade a fazer lembrar Mao. Orgulham-se do terreno que foram conquistando nas últimas décadas, e estão convencidos que "até em Lisboa há portistas". Enganam-se. Haver há, os que emigraram. Os outros são sportinguistas arrependidos, uns BPS à parte, que são anti-Benfica.
Os sportinguistas são, dos três, os mais simpáticos. Acho que as minhas namoradas eram todas do Sporting. Têm orgulho de ser do Sporting, consideram-se uma elite. São os tais “netos de visconde” de que o Octávio Machado falava. Quando penso num sportinguista tipo vêm-me à ideia um indivíduo calvo, sorridente, técnico de informática, com um autocolante “salvem as baleias” no PC e outro “Bebé a bordo” no Fiat Uno (agora já não há assim tantos Fiat Uno). São os BPS que mais filosoficamente aceitam a derrota, e não entram em grandes euforias quando ganham, porque afinal, “é normal”. São uma malta que sabe estar na vida. Sendo os mais simpáticos, são também os mais permissivos, e talvez por isso nunca ganham, coitados. Simpatizam com o Porto, porque "ganha títulos em vez do Benfica". Para eles ver o Benfica perder é um prazer indiscritível. Dizem com a maior das calmas e com um desportivismo latente que "o Porto é melhor clube português dos últimos 30 anos", mas secretamente desejam que os BP (Benfica/Porto) se matem, esfolem e auto-destruam. O seu mote é "quem espera sempre alcança".
Outra palermice que os adeptos gostam de reafirmar é que “são BPS, mas são portugueses e querem que os outros ganhem na Europa". Mentira. Na hora da verdade o visceral ódio vem logo ao de cima. Basta observar este ano a novela entre Porto e Benfica por um lugar na Liga dos Campeões. Mas nos outros países é assim, porque havia Portugal de ser diferente? Na Espanha os adeptos do Barça ficam furiosos quando o Real Madrid vence um troféu europeu, e vice-versa. Na Inglaterra os adeptos dos outros clubes mordem-se de inveja com o sucesso europeu do ManU, e na Itália os adeptos esfolam-se mesmo em jogos internacionais.
Mesmo na selecção nacional o clubismo dita as suas regras. São os BPS cada um a puxar a brasa à sua sardinha, a achar que devem ter mais jogadores do seu clube na selecção de todos nós. Culpam árbitros, dirigentes, políticos e outros pelas derrotas. Têm uma lista negra de responsáveis pelos seus fracassos, e não se importavam de ver "toda a gente na cadeia" para poder festejar as vitórias para que, afinal, muitos nada contribuíram...