segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

De um rico pudim a pudim rico


Quando era ainda um chavalinho imberbe, no início dos anos 80, a China era ainda um gigante adormecido. O Dragão ainda sarava as feridas de décadas de equívocos tremendos, e em Portugal a única referência era o livrinho vermelho de Mao, leitura de mesinha de cabeceira de alguns idiotas, perdão, intelectuais…não, eram mesmo palermas, que se diziam maoistas. Os excessos do PREC que se seguiu à revolução dos cravos deu para tudo, até para considerar o Maiosmo viável. Gostava de perguntar aos Durão Barrosos e às Ana Gomes desta vida que bicho amarelo os mordeu. Mas quem os viu e quem os vê, ah ah.

Para quem ignorava isto, a China era, ora, a China. Fulanos de bigode fino e comprido vestidos de roupão amarelo com desenhos de dragões e chapéus em bico, como na embalagem do pudim flan El-Mandarim, indivíduos amarelados de olhos minúsculos que puxavam um Riquexó enquanto abanavam a longa trança, mulheres misteriosas vestidas de cabaia com um ar maquiavélico, como no anúncio da sopa chinesa da Maggi. Os restaurantes chineses eram ainda muito poucos, e os seus proprietários/cozinheiros/empregados eram entidades misteriosas, ao estilo do Dr. Fu Manchu ou do Detective Charlie Chan. Qualquer pessoa com olhos em bico era inevitavelmente “chinês” (mesmo um japonês, coreano ou até um malaio) e mesmo um português de gema com o olho mais rasgadinho não se livrava da alcunha de “China”. Macau era uma realidade distante, e os portugueses que aqui trabalhavam eram vistos quase como condenados ao degredo.

Confesso que esses tempos tinham uma certa piada. Era uma forma de racismo tolerável, considerar que todos os chineses comiam arroz com pauzinhos e sabiam lutar kung-fu. A série de produção honconguense “Jovens Heróis de Shaolin”, transmitida pela RTP em meados dos anos 80, serviu para enaltecer ainda mais a aura mística à volta da China e dos chineses. Da mesma forma que o Brasil era o país que viamos nas novelas do serão, a China era exactamente como na série dos alunos de Shaolin: não mudou nada. Nunca me passou pela cabeça naquele tempo visitar a China um dia. A distância em só por si um factor dirimente. Agora aqui estou, e já passei a maior parte da minha vida na terra dos Mandarins. Ora bolas.

Não sei se prefiro aquela China da minha infância ou a China dos dias de hoje. Claro que para os chineses não se coloca sequer esta questão, pois o caminho é (e sempre foi) para a frente. Mas a China dos Mandarins, dos bazares, dos bigodes compridos e dos riquexós era bem mais inofensiva que a actual segunda maior economia mundial e potência militar que rivaliza com os Estados Unidos. Apesar de tudo, os portugueses não deixaram de achar piada à ideia. Os chineses continuam a ser vistos com “aquela gente esquisita”, e para agravar o preconceito, vieram as lojas dos chineses. Tenho a certeza que os chineses em Portugal adorariam integrar-se no seu país de acolhimento sem que pese sobre eles a fama das lojas e dos restaurantes. Aposto que os chineses em Portugal adoram o nosso país, comem bacalhau e sardinha assada, vão à Caparica no Verão e ouvem o Toy. Se não o fazem, com toda a certeza que vontade não lhes falta.

Hoje somos massacrados com a visão economicista do país do meio. Todos querem ir para a China, a China é apetecível, a China é que está a dar. A tendência espalhou-se um pouco por toda a Europa, e até na semana passada os jogos de alguns campeonatos europeus transmitidos à hora de almoço não esqueceram as comemorações do Ano Novo Lunar, com os jogadores a envergarem caracteres chineses nas camisolas e nos coletes. Há 30 anos seriam motivo de chacota. No século XXI têm “visão” e “piscam o olho” ao mercado asiático. Ninguém diria que alguns grandes clubes europeus ( Everton, assim de repente) teriam um patrocínio chinês nas camisolas, e não é de massas chinesas ou de pudim flan. A forma com que o capital se rendeu ao potencial chinês chegou mesmo ao ponto do ridículo, quando o meu conterrâneo Paulo Futre saltou para a ribalta com a história dos “charters cheios de chineses” nas últimas eleições do Sporting.

Curiosamente o amor que sentimos pelos chineses é correspondido, mas não pelos mesmos motivos. Os turistas chineses pelam-se pela Europa, pelas igrejas, pelos monumentos, pelos castelos, pelos motivos de interesse histórico em geral. A mim encantam-me os templos, as cidades chinesas, os jardins, os pagodes e tudo mais. Estou-me nas tintas para os castelos medievais, para as catedrais checas e húngaras, para os canais de Veneza ou para a Torre Eiffel, tudo mais que visto. É uma questão cultural: somos atraídos pelo que é diferente.

A nossa Europa está falida, infelizmente, apesar da nossa contribuição para os valores humanistas mais elementares, da nossa arte e da nossa tão apregoada cultura. Chegámos ao ponto da rotura, não há arte renascentista e capela Sistina que nos valha, e não nos resta senão a viragem ao mercado asiático, que é onde para o “carcanhol”. Demos o braço o torcer, e o “perigo amarelo” dos anos 60 deu agora lugar à “oportunidade amarela”. O Dr. Fu Man Chu e os heróis de Shaolin não viraram a cara à luta, e venceram a batalha. E quanto aos que ainda riem…riem do quê?

1 comentário:

Anónimo disse...

Leocardo,
Capela Sistina se faz favor. Antiga Capela Magna restaurada pelo papa Sixto IV entre 1477 e 1480.
Daí a denominação de SISTINA e não CISTINA