Artigo publicado na edição de ontem do Hoje Macau.
Apesar da pacata (e pataca) monotonia com que passam os dias, pontuados com a invasão de milhares de turistas que nos sufocam aos fins-de-semana e dias feriados, Macau é uma cidade que convida a uma saída nocturna. Quer dizer, para quem gosta. Não faltam opções para quem se quer divertir fora de horas, a escolha é cada vez mais variada, mas até neste ponto tenho saudades da Macau de outros tempos. Perdoem-me a nostalgia própria da idade que avança a um ritmo implacável, mas as actuais discotecas, bares e outros locais de diversão nocturnos da moda não me enchem as medidas. É tudo muito mais moderno, espaçoso e frequentado por gente jovem e bonita, mas sinto a falta de um passado ainda fresco na memória, em que a cidade se distinguia das restantes da região pela sua originalidade e simplicidade. Não existiam as festas por convite à beira da piscina de qualquer hotel de luxo, animadas pelos DJ’s da moda, os dançarinos profissionais, os “dress codes”, as fotos no Facebook no dia seguinte. Era tudo muito mais simples, mais humano, mais volátil e por isso mais precioso.
No início dos anos 90, há cerca de vinte anos, a animação nocturna que existia fora da esfera dos bares de karaoke estava delimitada a uma zona da cidade que todos os estrangeiros e portugueses residentes no território conheciam bem. A noite começava por volta das 11 horas na Rua Pedro Coutinho, onde se podia optar pelo Pyretu’s, um bar de música Africana que nunca desiludia os aficionados do género, ou na porta ao lado, no Talker’s, um agradável “pub” ao estilo ocidental animado com música de “juke-box”, e que servia de ponto de encontro aos noctívagos desejosos de emoções fortes. A vizinhança entre os dois bares, ambos extintos há mais de dez anos, permitia que os clientes se revesassem, o que era frequente. Quem optava por começar a noite num “mood” mais suave ia até ao Clube de Jazz, situado então na Rua das Alabardas, no Bairro de S. Lourenço.
Pelas duas da manhã, e já com os espíritos em alta, a discoteca Mondial era ponto habitual de romagem. Situada no segundo andar do hotel com o mesmo nome, na Rua de Silva Mendes, esta era uma “discoteca” na acepção do termo, e ali acorria todos os tipos de fauna do território. O ritual de “abanar o capacete” era cumprido religiosamente por portugueses, chineses, tailandeses, filipinos e estrangeiros das mais diversas origens, e um local de eleição para fazer aquele “engate” mais ou menos indiscreto, que fechava a noite mais cedo, mas com chave de ouro. Muitos anos antes da chegada a Macau das concessionárias de jogo do Nevada, esta discoteca foi pioneira de uma máxima que caracteriza Las Vegas: “O que acontecia no Mondial, ficava no Mondial”. Pela módica quantia de 90 patacas que davam direito a duas bebidas, podia-se dançar até quase às cinco da manhã, altura em que se acendiam as luzes que anunciavam o fim de mais uma bonita festa.
À saída era muito fácil encontrar um táxi que nos levasse a casa, sozinhos ou bem acompanhados, depois de mais algumas horas bem passadas. Os mais resistentes seguiam até ao restaurante tailandês Kruatheque, na Rua Henrique de Macedo, à distância de dez minutos a pé pela Avenida Sidónio Pais. O restaurante, que ainda existe, tinha naquele tempo uma pista de dança no rés-do-chão, onde a animação durava até depois das sete da manhã, completamente grátis – pagava-se apenas pelas bebidas, e o consumo não era obrigatório. Quem optava por cear, uma alternativa mais dispendiosa, fazia-o na companhia de jovens e belas tailandesas, mão-de-obra das saunas do território, então em muito maior número que hoje. Os mais ousados podiam meter conversa, e procurar a sorte que não lhes sorriu no Mondial. A madrugada era a altura do dia de maior negócio no Kruatheque. O regresso a casa fazia-se já bem depois do nascer do dia, anunciando um Domingo de merecido repouso.
Os bares da Pedro Coutinho e o próprio Hotel Mondial passaram de moda e tiveram a sua “demise” em finais da década de 90, quando a animação nocturna se transferiu de armas e bagagens para o NAPE, onde os bares começaram a surgir como cogumelos. A opção “discoteca” sofreu com o aparecimento do som “trance” e do “techno”, e resumia-se a alguns poucos locais onde o ambiente era muito mais pesado que o velhinho e saudoso Mondial. Eram novos tempos, diferentes, mas mesmo assim divertidos. A própria zona de bares do NAPE, que chegou a ser comparada com as docas de Alcântara, em Lisboa, foi perdendo o charme, resumindo-se actualmente a alguns estabelecimentos banais, sem o mesmo encanto de outrora.
Há quem diga que os gostos mudam da mesma forma que as gerações se sucedem, e se calhar sou eu quem está completamente “out”. Pode ser que sim. Estou de fora desta vida nocturna onde é tudo meticulosamente preparado, coreografado, e nada é espontâneo ou deixado ao acaso. Talvez seja também um demagogo e um forreta, mas ainda sou do tempo onde todos nos encontrávamos e festejávamos sem etiquetas nem compromissos, em que não se pagava por um afecto ou por um gesto mais sensual, e uma ousadia ou um atrevimento não eram negociáveis. Não estou por dentro desta “indústria” que produziu profissões como “DJ”, “VJ” ou “organizador de eventos”. Do meu tempo só restaram as pêgas e os traficantes, que talvez sejam agora conhecidos por outro nome mais pomposo. Resta-me agora curtir o reumatismo, sentado à lareira numa cadeira de baloiço, na companhia de um livro que vou lendo com as minhas lentes grossas. Só que de quando em vez vou parar para suspirar e desabafar em voz alta: “Que saudades daquela noite de Macau…”
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