quarta-feira, 2 de julho de 2014

Acção cívica "in motion": foi mesmo aqui ao lado


Cerca de quinhentas mil pessoas sairam à rua ontem em Hong Kong por altura do 17º aniversário da criação da RAEHK, exigindo democracia, sufrágio directo e universal, e sobretudo para manifestar o seu descontentamento com o Executivo liderado por CY Leung. A organização fala em 510 mil manifestantes, enquanto as autoridades falam em 98600 - menos de cem mil, ou seja um quinto dos números avançados pela organização, e muito aquém dos números reais, mesmo que meio milhão peque por excesso - o que não parece ser aqui o caso. Esta discrepância foi ridicularizada nas redes sociais, mas também não era caso para tal. O que muita gente não está a levar em conta é o facto deste ser um povo que gosta de apostar, para quem o jogo é o princípio, o meio e o fim de tudo. Esta estimativa funciona como o "black jack" - sabendo que os manifestantes iam com toda a certeza exagerar nos números da adesão, a polícia joga pelo seguro, apostando num valor que não ia rebentar. Os organizadores da manifestação têm 20 pontos e pedem mais uma carta, a polícia tem um duque e fica-se. Parece-me sensato. Quem "rebentou" mesmo foram 500 elementos do maranhal - 511 mais precisamente, 351 homens e 160 mulheres, segundo fontes policiais - que não observaram a lei, manifestando-se onde não lhes era permitido, e acabaram o feriado na choldra. 511 em 510 mil parece insignificante em termos proporcionais. Faz lembrar um certo colégio eleitoral que escolhe o CE deste lado do Rio das Pérolas. Pode-se considerar então que esta manifestação, a maior da história da RAEHK, decorreu pacificamente, e parece que o essencial da mensagem ficou transmitida: a malta em Hong Kong não está satisfeita, e quando diz que quer ser ela a escolher o Chefe, está mesmo a falar a sério.

Isto vem levantar a velha questão da participação cívica e educação política dos residentes de Hong Kong comparada com a sua congénere de Macau, que neste ponto de discussão parece não ter muitos argumentos. Mais uma vez o contraste faz-se pela forma extrema como em Hong Kong se abordam os temas fracturantes, enquanto que deste lado existe uma perigosamente acomodada passividade - mesmo que gradualmente isso esteja a mudar. Já desisti dessa ladaínha do meio-termo, pois quem sou eu para entender o que vai nestas cabecinhas que de uma forma ou outra, só têm levado com a moca nos últimos cinco mil anos? Começo a pensar que é muita ousadia da minha parte começar a tentar racionalizar algo que não está nos limites das minhas capacidades. A questão da "consciência política" é uma árvore que nasceu torta. Enquanto as negociações para a transição de Hong Kong foram feitas "na marra", com as partes a puxarem a brasa à sua sardinha, muitos murros na mesa e muitas horas de sono perdidas até se chegar a consenso. Em Macau foi tudo feito com muita diplomacia, muitos paninhos quentes, tudo em nome de um ideal abstracto que hoje pouco ou nenhum valor tem, o da "amizade secular entre os dois países". No fim há quem diga que ficámos a ganhar com a nossa posição "conciliadora" (leia-se "de perna aberta"), e mais bem vistos ao olho de Pequim. Mas será mesmo assim? É que nesta coisa dos "bons alunos" e dos "filhos pródigos", especialmente quando se trata da China, é como um lindo dia de sol com céu limpo no Kansas: nunca se sabe quando pode chegar um tornado que arranque tudo do chão.

De um lado estavam uns gajos que roubaram o território aos chineses recorrendo a um expediente nada ortodoxo, viciando-os no ópio, e que não queriam abrir mão dessa posse nem à lei da bala, do outro estavam os "anjinhos" com o conto da carochinha dos comerciantes, do entreposto, conversa para boi dormir, que só queriam era açambarcar a maior quantidade de patacame possível para tornar a "barra dura" que é a vida no "rectângulo" lá nos confins da Eurásia menos insuportável. No essencial, do que ficou, os primeiros sairam de cabeça erguida, dotando a recém-criada Região Administrativa de valências que asseguravam a manutenção de um sistema pluralista, democrático, onde ficavam garantidas e imaculadas as mesmas liberdades e direitos que vigoravam antes da transferência de poderes; e ficou ainda o recado: "estejam atentos, certifiquem-se que são cumpridos os compromissos, não temam em caso de precisarem de demonstrar o vosso descontentamento, e sobretudo participem na vida social e política, sem inibições". Aqui foi "ok, 'tá bem, adeus ó vai-te embora, olha se quiserem ficar aprendam mandarim e tal, eu no vosso lugar bazava era daqui p'ra fora, fosga-se que estes gajos são lixados, chau-chau Penha, olá Quinta Patiño, aguenta que eu vou a caminho, e epá boa sorte, que vão precisar dela". De um lado tivemos lordes ingleses a tratar do trespasse, aqui tivemos chicos-espertos. Ainda perguntam porque é que os tipos lá em Hong Kong são "assim", como se isso fosse uma coisa má?

Depois há a questão da exigência. Quer dizer, Hong Kong é uma praça financeira mundial, e não há ali a galinha dos ovos de ouro do jogo e dos respectivos impostos sobre o mesmo, que enchem os cofres do erário público, faça chuva ou faça sol. Em Hong Kong há compromissos com outros mercados financeiros mundiais, com grandes multinacionais, investe-se, aplicam-se investimentos, especula-se mas apenas dentro dos limites do que é especulável (a habitação em Hong Kong é e sempre foi caríssima, e nenhum maluco se ia atrever a especular a esse nível; se o fizeram aqui foi porque deixámos, portanto fomos burros), e vive-se no fio da navalha das oscilações das bolsas, das subidas e descidas dos câmbios, dos ditames da geopolítica mundial; portanto é preciso ser vivo, esperto, e fazer as continhas bem feitas. Aqui fica-se deitado na rede, à sombra da bananeira à espera que as bananas nos caiam na mão de maduras, fazem-se contas de merceeiro com o lápis atrás da orelha, e se não bate certo é só tapar os buracos com o dinheiro dos casinos. Além disso ninguém se importa muito ou questiona onde vai parar todo o dinheiro, e as misteriosas empresas anónimas sediadas em "offshores" caribenhas são elefantes voadores que se teima em fingir que não existem, mesmo que nos acertem com uma póia de cinco quilos na tola. Isto tem todos os ingredientes da velha fábula da cigarra e da formiga, e só fico a cruzar os dedos paa que não tenha um desfecho igual. A propósito, a cigarra somos nós, Macau, caso isso não tenha ficado claro.

Existe um conceito um tanto ou quanto estrambólico de que os honconguenses "têm inveja de Macau". Inveja do quê, exactamente, não sei, mas esta mirabolante teoria vem suportada por algumas "campanhas negras" alegadamente orquestradas do lado de lá contra o lado de cá, nomeadamente através da imprensa, que pega em tudo o que seja notícia negativa a nosso respeito, e por vezes "exagera". Bem, concordo nisto, mas apenas em parte. É um facto que a imprensa de Hong Kong não nutre muita simpatia por Macau, isso já ficou provado em mais que muitas ocasiões, mas essa de "pegarem em notícias negativas" tem muita piada. Sei que aqui a malta gosta do sabor da rolha que lhe obstrui o buraco por onde canta "karaoke", mas daí a pedir que os outros provem do mesmo xarope, só pode ser mesmo uma piada de mau gosto. Os cheques, pois os cheques, como os gajos se roem de inveja, ao ponto de muitos deles se terem metido no "jetfoil" e virem até cá inventar histórias do arco-da-velha que provem a sua ligação com o território, e com isso adquiririm o BIR que lhes dê direito a que caia um chequezinho na conta uma vez por ano sem mexer um dedo. A dolce far niente, versão Made in Macau. É um facto que isto aconteceu, e eu próprio lidei com algumas destas pessoas no âmbito das minhas funções profissionais, mas gente somítica há em toda a parte, e não vão ser dois mil e tal ou três mil desocupados que me convencem que aqui ao lado há sete milhões de "cravas". Além do mais os poucos com que lidei eram gente educadíssima, que não veio exigir nada nem fazer barulho, e todos eles vinham com ambições legítimas - mesquinhas, mas nem por isso menos legítimas.

Quando faço estas comparações lembro-me sempre do saudoso tio avô da minha mulher, o irmão do seu avô do lado materno, que viveu toda a vida em Hong Kong e depois de se aposentar mudou-se para Macau, para ficar junto da família e para ter um pouco daquilo que ele considerava "sossego" - entretanto muita coisa mudou desde que ele faleceu, vai para sete anos. Na hora do jantar, com a família toda reunida à volta da mesa e com o canal chinês da Pearl como som de fundo, era vê-lo a barafustar por tudo e por nada na hora das notícias, e isto com mais intensidade durante o consulado de Tong Chee-Wa, o primeiro líder do Executivo da RAEHK, de quem o senhor era bastante crítico. Este era um homem que chegou a viver dos juros mensais que lhes rendiam as economias depositadas no banco - ele lá precisava de um pífio cheque uma vez por ano. Depois do evento da RAEHK, acabou-se o que era doce, e ele não se inibia em expressar os seus pontos de vista alto e bom som; podia não perceber nada de economia, mas das suas contas sabia ele, e das linhas por onde se cosia. Como eu adorava dominar a língua, só para poder ficar horas e horas e ouvi-lo e trocar impressões com ele, com o sr. Lok. Enquanto ele protestava, visivelmente irritado, esbracejava e preguejava, a sua "família de Macau" preferia preencher as vias de comunicação com arroz e massa. Isto diz quase tudo quanto à diferença entre os nativos dos dois lados do Rio das Pérolas em termos de verticalidade.

Claro que perante toda esta insatisfação, Pequim fica a torcer o nariz. Duvido que torça o nariz aos manifestantes, que se não estão contentes, devem ter as suas razões. Podem acusar os honconguenses de tudo menos de falta de patriotismo; ficariam quietinhos se estivessem satisfeitos, e certamente que arranjavam algo mais interessante para fazer numa tarde de calor de um dia feriado do que andar a marchar pela rua. Pequim olha antes com desdém para os artistas, e faz uma auto-análise, e de seguida uma auto-crítica - e se não faz, devia fazer. Quer dizer, não é de bom tom que um empreendimento da responsabilidade que é este das RAEs, que visava conciliar a soberania da R.P. China, um estado autocrático e comunista, e um sistema de economia liberal sustendado em princípios comuns a democracias ocidentais - o chamado segundo sistema - ficasse a cargo de homens de negócios, cuja maioria deles já havia feito fortuna durante a administração colonialista, ora em conluio, ora paralela a esta, mas sempre com a sua anuência. O que sabem os homens de negócios fazer senão fazer dinheiro para eles e para os que protegem os seus intersses? Neste aspecto Hong Kong ainda teve mais azar com o que lhes saíu na rifa do que Macau; os CE da ex-colónia britânica deviam ter aprendido com o nosso actual: "look busy, do nothing". Quanto menos se faz, menos se erra, e essa parece ser uma máxima que colhe por estas bandas. A verdade é que se ainda fosse Deng Xiaoping, o "pai" do princípio idealizado para as duas regiões a dirigir a banda, os "chefes" com mais olhos que barriga que perverteram o seu ideal tinham sido corridos à vassourada logo à primeira tonteria.

Se a China tivesse optado por pessoas inteligentes com os conhecimentos mínimos de política - e não, não me refiro aos tecnocratas do Politburo, mas gente de Hong Kong e de Macau, e se não os formou, falhou também nesse ponto - que soubessem aplicar a Lei Básica e tivessem a elasticidade mental para saber interpretá-la, tudo seria com toda a certeza diferente. Reparem como se passaram 17 e quase 15 anos, respectivamente, e nem uma emenda às leis básicas foi feita; e já era altura. Ter uma constituição com a qualidade da Lei Básica, e isto é inquestionável, e não adaptá-la à realidade presente, é como um hospital adquirir um equipamento sofisticado, topo da gama, e deixá-lo dentro da caixa sem usá-lo com receio de o partir. Era colocar estes "cérebros" a tomar conta do segundo sistema, procurando sempre pontos de equilíbrio com o primeiro, evitando interferências e choques com o mesmo, e pagar-lhes um ordenado generoso pelo seu desempenho - e talvez aqui fizesse sentido a tal lei das Garantias para os altos-cargos, que na forma actual tem contornos de delírio. Em vez disso temos uma corporocracia levada a cabo por gente que não entende nada de política, não tem tacto para lidar com as classes baixas porque as únicas com que teve contacto são os seus subordinados, enfim, um erro crasso que agora é tarde para corrigir.

Portanto se perguntarem "o que querem estes tipos de Hong Kong", a resposta é muito simples: querem aquilo a que têm direito, e que lhes foi prometido. Com a malta aqui do lado não se faz "caixinha". Atrevesse-se um Stillwell qualquer a lançar fogo em palha seca como fez deste lado, colocando em cheque tudo aquilo para que se trabalhou no sentido de vigorar um sistema onde as populações das RAEs aceitaram viver - e não me digam que aceitavam incondicionalmente ficar aqui na mesma se Macau e Hong Kong tivessem sido completamente absorvidos pela RPC desde o início - e tinhamos o caldo entornado, e até a barba do padreco ficava a prémio. Foram 510 mil vozes, ou 500 mil vá lá, não foram noventa e tal mil como diz a lírica polícia honconguense, nem "meia dúzia de malucos", como eram apelidados os "bate-pé" do costume aqui em Macau durante anos. Se há algo que deviamos apreender olhando para o que aconteceu aqui ao lado ontem, era que talvez devíamos elaborar uma lista de "presentes", e antecipar o Natal cinco dias, para 20 de Dezembro. Não apelo (nem recomendo) que se faça o mesmo, que se tomem as ruas de assalto, mas que se pondere fazer aquele gesto que fazemos normalmente quando é hora de qualquer coisa, batendo com o indicador no pulso, e perguntar: "então meus meninos, e nós, no que ficamos?".

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