sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Quem somos, realmente? Parte XVII: duas metades de homem


Um dos primeiros registos discográficos do grupo GNR foi o álbum “Os homens não se querem bonitos”, um título inspirado numa expressão dos antigos que dizia que os homens queriam-se “brutos, feios e a cheirar a cavalo”. Quanto à parte dos brutos e feios não há muito a fazer, mas quanto à questão do cheiro, a cosmética masculina evoluiu ao ponto de ser possível aos homens, por muito rústicos que sejam, não cheirar mais a cavalo. Na realidade basta um simples banho diário para disfarçar aquele cheiro “a homem” que os homens têm depois de um dia de labuta mais exigente, debaixo de um sol escaldante, produzindo quantidades copiosas de suor. Compreende-se que em tempos idos, quando o país estava mergulhado ainda numa certa ruralidade, fosse pedir demais tomar banho com uma frequência diária, mas hoje em dia só cheira mal quem quer. Existe um vasta gama de sabonetes, shampoos, desodorizontes e colónias criados para o homem que sabe o que quer (e isto começa a parecer um anúncio). Contudo nos últimos anos surgiu um tipo de homem que usa, abusa e reusa desta cosmética: o metrossexual.

Esta palavra, “metrossexual”, é um neologismo produzido pela cultura pop. Façamos uma resenha dos prefixos mais conhecidos que se acrescentam à palavra “sexual”. Assim o heterossexual é a pessoa que sente atração sexual apenas pelo sexo oposto, derivado do grego “hetero”, que significa “oposto”, ou “o outro”. Estes são ainda uma maioria, mas começam a ser seguidos de perto pelos homossexuais. “Homo” significa “o mesmo”, e ao contrário do que muita gente pensa, uma mulher lésbica é homossexual, pois sente-se atraída pelo mesmo sexo. Este “homo” não tem nada a ver com “homem”. Quem não se consegue decidir pelo sexo da sua eleição e aprecia a pouca-vergonha com ambos os géneros, é bissexual, ou seja, tanto disfruta da flora vaginal da fêmea, como morde a almofada enquanto o macho lhe tapa a tomada, e vice-versa. O transsexual, por seu lado, também conhecido pela abreviatura “trans”, é o indivíduo que, não satisfeito com o seu género, muda para o outro, quem sabe se para ter a informação completa sobre a totalidade das funções e das sensações de ambos. Mais raro é o panssexual, que se define pelo indivíduo que não identifica o género do seu objecto sexual, ou seja, é mais ou menos como o bissexual mas com menos regras: qualquer coisa marcha.

Posto isto, falemos deste metrossexual. A prefixo “metro” não tem nada a ver com o transporte subterrâneo, e até sou capaz de apostar que muito boa gente pensou que se tratava de algum tipo de fetiche envolvendo a prática de relações sexuais no túnel entre as estações do Rossio e dos Restauradores. Este “metro” significa “metropolitano, cosmopolita”. É o indivíduo que, sendo atraído pelo sexo oposto, adopta uma conduta semelhante a ele. São os tipos que exercem cuidados especiais com a sua aparência: usam loções e cremes hidradantes, fazem manicure e pedicure, passam a tarde de Sábado no cabeleireiro, e são sensíveis, “estão em contacto com os seus sentimentos”, e ouvem as mulheres. Em suma, são iguais aos rabetas, mas não levam no pacote – pelo menos é o que dizem. Isto só funciona nos homens, e porquê? Porque as mulheres já fazem tudo isto e mais, e não tem nada a ver com a sua orientação sexual.

Os heterossexuais desconfiam do metrossexual, os homossexuais piscam-lhe o olho, e para os bissexuais tanto faz, ele que lhes dêm um toque se quiserem qualquer coisa. Afinal que tipo é este que entra em pânico quando detecta uma nódoa de caril na gravata, grita quando lasca uma unha e presta atenção às conversas das mulheres? Para melhor perceber as diferenças, vamos pegar em dois exemplos: o Fernando e o Gonçalo. Têm ambos 30 anos, trabalham na mesma empresa e são solteiros, com uma nuance apenas: o Fernando é um comum heterossexual, e o Gonçalo é um desses “noveaux” metrossexuais. Observemos como ambos se comportam numa segunda-feira de manhã, primeiro dia de trabalho depois de mais um fim-de-semana.

O Gonçalo vive num estúdio nas Olaias, decorado com móveis Ikea, algumas pinturas na parede, entre eles um Cargaleiro e uma Maluda. Acorda às seis e meia da manhã, passa uma hora na casa-de-banho e depois disso toma um pequeno-almoço rico em fibra, com predominância para as frutas e para os cereais. De seguida passa uma escova no fato, engraxa os sapatos, olha-se umas dez vezes ao espelho antes de sair, dá comida ao gato persa que ainda dormita na impecável kitchnette, e sai por volta das 8:20 para ir à luta. O Fernando vive num T1 em Sacavém, acorda depois das oito, sem se recordar a que horas foi dormir ou que já é segunda-feira. Ao sair da cama aleija o pé numa lata de amendoins deixada no chão e diz um palavrão. Enfia a primeira camisola que tira do armário, as mesmas calças de ganga das últimas duas semanas e passa água fria na cara. Mete mais jornais por cima do mijo do Tareco e no tem tempo para comer. Sacode o cabelo e sai de casa, esquecendo-se novamente que o fecho está partido, e deixa a porta semi-escancarada.

O Gonçalo conduz um Audi 4 que cheira a pinho da Lander, o Fernando apanha camioneta com o resto do maranhal, já com a certeza que vai chegar atrasado. Chegado ao parque de estacionamento da empresa vinte minutos antes da hora, Gonçalo sai do carro com um perna de cada vez, não se esquece de activar o alarme, e apanha o elevador para o seu andar, verificando no espelho a consistência do seu penteado. Fernando quase perde a sua paragem, tropeça ao sair da camioneta e insulta a velha que deixou um saco de compras junto à porta da saída. Dá uma corrida até à empresa e chega lá a deitar os bofes pela boca, e chega “só” quinze minutos atrasado. Os colegas de Gonçalo dizem-lhe “bom dia, Gonçalo”, com um sorriso de orelha a orelha. Os colegas de Fernando dizem-lhe “olha quem é ele...já acordaste?”, sem estabelecerem contacto visual.

Dez da manhã. Gonçalo já adiantou o trabalho dessa semana e ainda teve tempo de telefonar à mãe. Fernando ainda não acabou de ler o jornal d’”A Bola”, e não atendeu as chamadas porque lhe “dói a cabeça”. Gonçalo usa cotonetes e fio dental durante a sua “toilette” matinal, enquanto Fernando acabou de tirar com a una um pedaço da bifana que mamou na noite de Sábado à porta do Estádio da Luz, e uma meleca amarela dos ouvidos quando ninguém está a olhar, que depois limpa à perna das calças. Pelas 11 horas Gonçalo faz uma pausa de dez minutos para o café, e tira um “capuccino” da máquina. Encontra a Isabel, que lhe conta o seu fim-de-semana, e ele escuta com atenção enquanto sorri, exibindo os seus imaculados dentes brancos. Ao nono minuto promete escutar o resto da conversa no intervalo da tarde, e volta ao trabalho. Fernando vai para as traseiras da cantina, demora meia hora a fumar três cigarros enquanto se entretém a dar pontapés numa lata de feijão que encontra no chão. Num desses pontapés desloca um joelho, e regressa a coxear para o seu posto.

Uma da tarde, hora de almoço. Gonçalo almoça na secretária a refeição “vegan” que havia sido hermeticamente preparada no dia anterior, enquanto passa os olhos pelo “Diário Económico”. Mastiga cada porção 22 vezes, e no fim bebe um copo de água mineral, e regressa ao trabalho exactamente uma hora depois. Fernando engole uma sandes de presunto à pressa no café da esquina, que empurra com uma imperial e remata com uma bica e um bagaço. Regressa ao serviço meia-hora depois para poder ainda “passar pelas brasas”. Adormece, ressona que nem um porco, e acorda duas horas depois, quando um colega caridoso lhe dá um toque para a sua extensão. Levanta-se sobressaltado, e ainda com os olhos vermelhos finge estar a olhar para o ecrã do computador, pois o chefe está a espreitá-lo pela janela do gabinete. Limpa à pressa a baba dos cantos da boca com a manga da camisola. Os colegas riem-se dele.

Cinco e meia, hora da saída. Fernando já vem contando os minutos desde as cinco, encosta-se ao relógio de ponto dois ou três minutos antes, e filosofa com um ou dois mandriões que lhe fazem companhia: “o último minuto é o mais comprido do dia”. Pica o ponto à hora certa e passa o resto da tarde na tasca mais próxima, e justifica-se por não querer voltar na camioneta mais cedo para Sacavém, “porque vem cheia de pretos”. Gonçalo deixa passar a hora, sai quatro ou cinco minutos depois das cinco e meia, e pelas seis vai para o ginásio, de onde sai às sete e meia. Gonçalo vai para a cama recompor as energias para o dia seguinte, Fernando vai cozer a bebedeira. Este Fernando é heterossexual, gosta é de gajas, o sacrista. Gonçalo é metrossexual, e gosta...não se sabe muito bem. Gosta do gato persa, a que dá umas festinhas quando volta a casa.

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