quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Quem somos, realmente? parte XV: o intelectual e o matulão


As mulheres, diz um daqueles estudos que não provam nada, desconfiam dos homens atraentes, e preferem homens menos dotados de atributos físicos, mas que compensem sendo honestos, fiéis, carinhosos, bons pais para os filhos, e o mais importante, que contribuam com a totalidade dos rendimentos para o orçamento familiar. Se forem gordos, carecas, com nariz de batata e emanando um desagradável odor corporal, tanto melhor, que assim as outras sirigaitas não lhe deitam as unhas. Mas as mulheres não são cegas, nem feitas de pedra, e estando casadas com o Danny DeVito, não se cansam de fazer olhinhos àquele carteiro tão parecido com o Enrique Iglesias. Enfim, já todos sabemos que entre aquilo que as mulheres são e aquilo que pensamos que são, vai uma distância de milhões de anos-luz. Por muitos estudos que se realizem, é impossível medir, quantificar ou prever com uma margem de erro mínima o que esperar das mulheres. Não há fotografia de satélite que nos assegure se amanhã chove ou faz bom tempo quando se trata de uma mulher.

Se eventualmente chegam a encontrar nos homens outros dotes que no apenas a aparência ou os atributos físicos, muitas mulheres passam por uma fase durante a adolescência em que dão mais importância ao pacote do que ao conteúdo, e suspiram por outros adolescentes e até alguns homens de que é muito fácil gostar. Nos meus tempos do Liceu, babavam-se por aqueles indivíduos de sexualidade ambígua que faziam parte das "boysbands", pelo Bon Jovi, por Kevin Costner, Johnny Depp e outros por quem tinham um "fraquinho" impossível de realizar. Isto irritava os namorados, que mesmo assim davam a isto a importância que tinha - era muito improvável chegar ali o Jordan Knight (se não sabem que este é pesquisem) e roubar-lhe a miúda. No mundo real deitavam olhinhos aos tipos mais populares da escola, aos atletas, aos betinhos mais bem vestidos, aos gajos com mota, aos que cumpriam o serviço militar, e eventualmente a um professor jovem e giraço, desde que não fosse "um chato". A quem elas não ligavam mesmo nada era aos "intelectuais".

O intelectual é um personagem do elenco do liceu que não goza de muita popularidade, pois teima em cumprir com a única obrigação que alguém na sua idade tem na vida: estudar e tirar boas notas. As miúdas desprezavam o intelectual, e tratá-lo por esse nome era considerado um insulto. Sentadas no muro junto do parque desportivo da escola, onde olhavam para os marmanjos da sua preferência a correr atrás de uma bola, chegava o intelectual, vestido com roupa simples, prática, livros debaixo do braço, de óculos, tímido, e pergunta-lhes "desculpem, sabem para que sala foi alterada a aula de Química". Elas faziam-lhe uma cara de mete-nojo, olhavam-no de cima abaixo e diziam "sai daqui, intelectual". O carácter que distinguia melhor o intelectual da restante fauna liceal eram os óculos. Um tipo que fosse apenas um aluno médio ou até um dos menos bons que tivesse "óculos" era sempre "intelectual". Os mais atléticos, ou os famintos das boas graças do sexo oposto, evitavam usar óculos, por muito que isso lhes custasse. Preferiam sair da escola com enxaquecas de morte derivadas do facto de terem passado o dia a esforçar a vista do que ser chamados de "intelectual". Os que não conseguiam evitar por serem mais míopes que o Magoo optavam por óculos de marcas "fixes", como a Benetton, e compensavam com o uso de outros adereços não-intelectuais.

A palavra "intelectual" implica o uso do intelecto, alguém que sabe, que estuda, que lê. É um tanto paradoxal que na escola, o local reservado por excelência à aquisição de conhecimento, quem mais se aplique nesse sentido esteja entre os menos populares. Os favoritos das meninas obedeciam sempre a três requisitos: 1) mais velho, 2) bom porte físico e penteado da moda, 3) não-intelectual. Este é o retrato-tipo do matulão, a antítese do intelectual. Ser repetente era sempre uma vantagem; uma cavalgadura com 17 ou 18 anos que ainda estivesse no 9º ano, que mal soubesse ler e escrever, incapaz de produzir um pensamento encadeado ou uma frase inteligível, mas que fosse "giro", era sempre o ídolo das adolescentes, que se derretiam pelo amontoado de massa muscular e pela ausência de neurónios. Além de ser um dos piores alunos, era também um dos mais indisciplinados, pois os 50 minutos de aula provocavam-lhe um tremendo desconforto. Era nos 10 minutos do recreio que atingia o seu auge, e no caso de haver um "furo", era uma festa. A meio do segundo período já estava "tapado" por faltas, e aí começava a exercer mais cuidado e a não faltar às aulas, apesar do desprazer que isto lhe provocava. Não que estivesse muito preocupado em reprovar, o que acaba sempre por acontecer, mas porque chumbar por faltas ia-lhe valer uma carga de porrada do pai. O matulão tem a quem sair; os seus pais eram normalmente rústicos e simplórios como ele, e o seu invejável porte físico deve-se ao facto de ajudar a família nos trabalhos da quinta ou o pai na garagem de mecânico.

O matulão enxovalhava o intelectual, agredindo-o e roubando-lhe o dinheiro do almoço, aquilo que hoje se designa por "bullying", e apesar da evidente diferença de idades entre ambos, as raparigas consideravam aquilo um acto de "valentia", a lei do mais forte. O matulão só era simpático com o intelectual no dia dos testes, ou quando se tinha esquecido de fazer os trabalhos de casa, e estava a uma falta de reprovar numa disciplina. Antes de uma prova decisiva, pedia ao intelectual que lhe explicasse em dez minutos o que o professor andou para ali a ladrar durante dois meses. O intelectual ajudava, temendo represálias, mas era o mesmo que falar para um parede: o tipo não perguntava o que queria dizer "invertebrado" porque não conseguia pronunciar a palavra. Se o matulão ficava sentado perto do intelectual nos testes, obrigava o último a deixá-lo copiar, mas de pouco adiantava, pois copiava mal. Um intelectual mais atrevido podia aproveitar-se da inteligência para humilhar o matulão nas aulas - se não se importasse em voltar para casa com uns dentes a menos e os óculos partidos, claro. As meninas que veneravam o matulão, elas próprias longe de serem brilhantes alunas, recorriam também aos serviços do intelectual na hora de maiores "apertos" académicos. Era uma das poucas vezes em que se lembravam do que deviam estar ali a fazer. O intelectual não se aproveitava desta vantagem para tentar cair nas boas graças das meninas, ora por timidez, ora por receio da reacção do matulão, que se julga sempre o único galo na capoeira.

A pauta das notas expressa sempre com fidelidade a natureza do intelectual e do matulão. O primeiro tira boas notas a quase tudo, e talvez uma mais sofrível a Educação Física, enquanto o outro tira excelentes notas a Educação Física e Desenho, e reprova em todas as disciplinas em que é preciso estudar, pensar e ler. Eventualmente o matulão volta a reprovar, e vai passando os seus encantos à seguinte geração de adolescentes superficiais, um ano mais novas. O intelectual vai começando a ser notado à medida que se vai aproximando da idade adulta, e as mulheres começam a entender que os resultados académicos têm - pasme-se - importância no futuro para quem ambiciona a uma carreira, e a um emprego onde se passe a maior parte do tempo sentado. O matulão, por seu lado, depois de reprovar pela quarta ou quinta vez, vai trabalhar nas obras ou na estiva, onde ainda assim chama a atenção das adolescentes pelo seu "rabo jeitoso". Com alguma sorte arranja um emprego num supermercado ou num café, onde um dia chega o seu ex-colega, o intelectual, acompanhado pela gaja mais gira do Liceu que ambos um dia frequentaram, e que o trata por "psiu!" ou "faxâfor".

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