terça-feira, 5 de novembro de 2013

Quem somos, realmente? Parte XIV: inveja


Nota: este post era para ser publicado mais para o final da semana, mas a pedido de várias famílias, antecipo-o para agora.

A inveja é um sentimento que consta do cardápio dos sete pecados mortais, e ao contrário de outros mais convidativos que até pratico amiúde e com gosto (gula, luxúria, preguiça), reveste-se de uma grande negatividade: é mau ser invejoso. Desde pequeninos que nos ensinaram que "a inveja é uma coisa muito feia", e de facto estamos cientes disso, mas às vezes não há nada a fazer; o indivíduo tem mau génio, fica preparado o terreno, chega a inveja, rega-se com um pouco de malvadez, e nasce o invejoso, qual planta carnívora, de caule espinhoso, cabeça arredondada e dentes em serra. Feio que mete dó.

Tal como a droga, a inveja só por si não faz mal a ninguém. Tanto a droga como a inveja estão ali sossegadinhas, e é quando são usadas que produzem no consumidor os seus efeitos devastadores. Assim como o drogado, o invejoso é imprevisível, pode tornar-se agressivo, resumindo, é perigoso. Reparem como "inveja" e "perigo" não rimam, mas já "invejoso" e "perigoso" sim. Isto é a prova científica daquilo que acabei de dizer. Epá já disse não sei quantas vezes que sou um génio.

A droga da inveja vicia logo à primeira dose, apesar dos seus efeitos serem dolorosos. Diz-se de fulano tal que "está roído de inveja", ou que o invejoso "tem dor de cotovelo". E de facto a inveja dói, rói, corrói, remói, mas não destrói. É possível deixar o vício, e para isso basta uma pequena mudança de carácter. Sair da inveja não requer metadona; basta deixar de ser tão pequeno e mesquinho. Quem se deixa levar pelo vício nunca morre de overdose, por muita inveja que destile e lhe corra nas veias. Pode viver invejoso até aos 100 anos e depois morre de outra coisa qualquer. Mas não vive realmente, pois a inveja não lhe permite, e pede-lhe que a alimente todos os dias, e cada vez mais. O invejoso está na morto, mas não sabe. É como uma barata a que se corta a cabeça: não morre do golpe, mas acaba por morrer de fome muito mais tarde, depois de uma longa agonia.

Enquanto algumas drogas duRas são extraídas da papoila do ópio, a inveja é extraída da vida dos outros. Para o invejoso, os outros não são melhores que ele, mas são uns sacanas, uns sortudos, uns engraxadores, uns meninos-bonitos do papá. Quem chegou mais longe do que o invejoso é porque se vendeu, é corrupto, fez batota, comprou o lugar, teve uma cunha. Se tem mais talento, e por muito que o invejoso se esforçe não lhe consegue chegar aos calcanhares, diz "grande coisa, também é só que ele sabe fazer". Se tem coisas melhores, seja um carro, uma casa ou uma namorada, ou até dinheiro, "que desperdício...dá Deus nozes a quem não tem dentes". Se é elogiado pela imprensa, é "mau jornalismo", se são os colegas ou os amigos, "são uns patetas, que não percebem nada disto, coitados".

O invejoso cultiva pelo objecto da sua inveja um ódio visceral, e faz dele o seu inimigo de estimação. Nada do ele faz é bem feito, e encontra defeitos em tudo, mesmo onde não existem. Se é um amigo que passa a objecto da inveja, começa a ver nele coisas que antes não via. É o "flash" da inveja a entrar em acção. Quando o invejado comete uma proeza acima de qualquer crítica, aplaude juntamente com os outros, mas sussurra entre dentes "que grande filho-da-puta". Ou em alternativa vira as costas, vai embora e quando lhe contam, diz que "não viu". Se lhe perguntam o que tem contra o objecto da sua inveja, ele diz "nada! eu? tás parvo ou quê? eu mais quero é que o gajo se lixe". Quando a sua inveja é tão evidente que não a consegue disfarçar, diz que os outros "conhecem o gajo muito mal", dando a entender que é dotado de algum tipo de percepção extra-sensorial que analisa toda a gente ao raio-x. Deixa no ar um pestilento traque de suspeita, mas nunca concretiza, pois não tem como o fazer, é lógico.

Já com a inveja a tomar conta dos sentidos,começa a alucinar,e elabora teorias da conspiração. Imagina que os colegas falam mal dele nas suas costas, vão todos juntos beber um copo sem ele depois do trabalho, deixam de o convidar para seja o que for, e tudo a mando "daquele gajo, que o quer ver de rastos". Quando dois colegas segredam, só podeme estar a falar mal dele, e a chamar-lhe "invejoso" - o que não seria nenhuma mentira, enfim, mas a mania da perseguição leva a uma paranóia onde se torna impossível racionalizar seja o que for. Esta fase terminal que nunca mais termina vai repetindo o seu ciclo, cada vez com mais intensidade, e à beira da loucura só existem duas saídas: o suicídio, ou o homicídio. No primeiro caso arrasta-se até ao topo de um edifício, vidrado que nem um zombie, de olhos azulados como um cão num estado avançado de hidrofobia, e salta, colocando um fim ao seu sofrimento derivado de não conseguir ser melhor que o invejado. No segundo caso vai ter com o pobre coitado, e fora de si atira-lhe as mãos ao pescoço e começa a estrangulá-lo, bradando "com que então és bom, ah? vamos lá ver se és assim tão bom mesmo sem respirar". E espuma da boca, como...bem, um cão num estado avançado de hidrofobia. Em ambas as situações as semelhanças com um cão raivoso são evidentes.

O invejoso anseia pelo dia em que o seu invejado se lixa, e das únicas vezes que reza, pede aos céus que lhe façam a vida negra. De dia imagina o tipo de joelhos a pedir-lhe perdão por ter ousado pensar que era melhor que ele. De noite sonha que ele vai a voltar num vôo de Oslo, onde acabou de receber um Prémio Nobel, o avião começa a cair, e borra-se todo nas calças enquanto dá gritinhos de pânico a fazer lembrar uma menina: "não quero morrer! aiii a minha mãezinha". Se esse dia realmente chega, é o dia mais feliz da vida do invejoso. Se o invejado cometeu uma falha grave que lhe custou o emprego, enche-se de soberba e remata para os colegas: "estão a ver? eu sempre disse que aquele gajo não era flor que se cheirasse". Se o invejado tem um azar que o deixa arruinado, declara falência, ou acontece-lhe uma tragédia que o deixa inconsolável, como morrer a esposa e os filhos, o invejoso torna-se no maior cínico, abraça-o, e diz-lhe "estou aqui para o que for preciso ah? qualquer coisa é só pedires, estás a ouvir???". Se o desgraçado morreu, chora lágrimas de crocodilo com os colegas, mas lá dentro da sua carapaça de falso amigo está o capetinha da sua consciência a rir, a abrir o champanhe e a atirar os foguetes. Mas o invejoso não deseja que o seu alvo morra, nada disso. Bastava que ficasse tetraplégico, e assim ele passava pela sua porta todos os dias, umas vezes a andar, outras a correr, de bicicleta ou a saltitar, ou ainda a fazer um "moonwalk".

É preciso ter cuidados redobrados quando se acusa alguém de ser um invejoso. É uma coisa com que não se brinca. O invejoso fica especialmente alterado quando o acusam de ser invejoso, porque vive em auto-negação constante. Para ele aquele sentimento que leva a que vá apodrecendo lentamente por dentro não é inveja: ele tem razão, e o resto do mundo é que se recusa a abrir os olhos. Não utilize a inveja como um insulto, e evite chamar a alguém de invejoso por dá cá aquela palha. Meça bem as palavras, para evitar dissabores. Se uma amiga sua ganhar o Euromilhões, não lhe diga "que inveja"; deixe claro que não tem inveja dele, da pessoa, mas apenas da sua sorte. Dizer de alguém que tem um talento invejável, é um elogio, mas dizer que se tem inveja do seu talento, é uma declaração de guerra. Atenção à forma e ao estilo. Cuidado ainda com os agentes provocadores da inveja, que procuram invejosos para queimar na fogueira inquisitória dos que rejeitam e censuram a inveja. Resolva a situação de uma forma graciosa, virando o feitiço contrao feiticeiro. Por exemplo, um amigo chega perto de si e começa a falar-lhe da nova namorada:

- Então, o que achas da minha namorada? Gira, não é?
- Sim, é engraçada...
- Ah vá lá, admite que estás com inveja.
- Não, nem por isso.
- Oh oh não me digas que arranjas melhor. Estás com inveja é ou não é? Uh? Pelo menos um bocadinho. Vá lá, admite.
- Já te disse que não, e já que insistes em moer-me o juízo, deixa-me que te diga sinceramente que nunca vi trambolho mais feio do que a tua namorada em toda a minha vida. Nasceu prematura, ela?

Identificado que está o perigo, coloca-se agora a pergunta: como reconhecer um invejoso? Ao contrário do comum drogado, que se deixa levar numa espiral de chungaria e anda por aí aos caídos, roto e sujo, numa figura patética, o invejoso não evidencia nenhum traço físico que o distinga do comum dos mortais. Pode ser bem-parecido, bem vestido, bem falante, longe de se imaginar que se trata na realidade de um invejoso. Faz lembrar aqueles tipos com um aspecto impecável, educado, um cavalheiro, que aos Domingos vai à missa de manhã e de tarde realiza peditórios para a paralisia infantil, mas vai-se a ver dá tareias de meia-noite na mulher. Muitas vezes olha-se para o invejoso e fica-se espantado: "aquele é invejoso? não parece nada...". Uma vez confirmada a presença do invejoso no seu local de trabalho, no seu prédio ou no seu bairro, coloque perto dele uma tabuleta onde se leia "cuidado com o invejoso", e certifique-se que tem as vacinas em dia.

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