sábado, 2 de novembro de 2013
Quem somos, realmente? Parte X: ciúme
Dizem que o ciúme é um monstro de olhos verdes. Não sei quanto à cor dos olhos, mas um monstro será com toda a certeza. O ciúme transforma o estado de espírito de tal modo que se torna impossível racionalizar seja o que for. É um fogo que arde sem se ver, um contentamento descontente, estar farto de estar de pé mas no conseguir ficar sentado, ter frio e calor ao mesmo tempo, não conseguir fazer um raciocínio ou pensar em outra coisa que não no ciúme, ou no seu objecto. Já me disseram que é semelhante aos sintomas da ressaca da heroína. E sim, o ciúme é uma droga que transforma o amor em ódio, dilui a paixão no ácido do queixume, faz dos melhores amigos rivais de morte. O ciúme é um pouco como a fé: não existe uma explicação científica. Ou se tem, ou não se tem.
O ciúme é comum a todas as espécie, ou pelo menos às maiorzinhas, aquelas que têm emoções, ou uma noção de território. Quem tem um cão e um gato em casa, e os bicharocos até se dão bem um com outro, vai reparar se no caso de prestar mais atenção a um deles, o outro torna-se arisco, desconfiado e agressivo. Isola-se, perde o apetite, começa a querer deixar de brincar, e quando tem uma oportunidade ataca o outro, quando o dono não está a olhar. Com os humanos é mais ou menos a mesma coisa. O ciúme reduz-nos à condição de irracionais, solta os nossos instintos mais básicos, e desarma-nos dos dotes da razão e do bom senso. É preciso saber distinguir inveja do ciúme; a primeira é mais racional, pois depende na maior parte das vezes de uma motivação material: alguém que tem mais dinheiro, talento ou sucesso. O ciúme é imaterial, etéreo, e parte de dentro de cada um, e basta um pequeno clique para despoletá-lo.
Há alguns brincalhões que se metem com as miúdas dos outros, e quando estas lhes dizem que têm namorado, eles respondem "não faz mal, não sou ciumento". É lógico que estão a dizer isto na brincadeira, mas todos somos ciumentos, e desde muito novos. Quando somos pequenos temos ciúmes dos irmãos, dos primos, e no caso dos rapazes temos ciúmes do próprio pai, com quem partilhamos a atenção e os afectos da mãe - é o infame complexo de Édipo. Vamos crescendo com o ciúme, e o ciúme vai adquirindo novas formas. Primeiro temos ciúmes do nosso melhor amigo, quando dá mais atenção a outros, da professora, que gosta mais de um colega nosso apesar do nosso esforço para tentar agradar, e finalmente nas relações amorosas, quando se começa a namorar. É no amor que o ciúme desenvolve a sua maior colónia bacteriológica.
Mulheres e homens são ciumentos, mesmo aqueles mais liberais ou permissivos, e todos se manifestam de uma forma ou outra, mais ou menos discreta. As mulheres lidam muito mal com o ciúme, transformam-se, saem da casca, mudam de pele, ficam possuídas. Para explicar o que sente uma mulher com ciúmes, é preciso ser...uma mulher com ciúmes. Já senti ciúmes, e ainda hoje sinto, se bem que o segredo para evitar o virus da ciumeira é não ficar exposto a relações afectivas sérias, mas nunca fui uma mulher. Contudo a simples observação de alguns comportamentos e até a exposição ao ciúme feminino a que fui sujeito (tende dó de mim, prezado leitor) permitiu-me tirar algumas notas sobre o os mecanismos da mulher ciumenta. Mesmo sendo impossível prever de todo a sua reacção, pode-se estudá-la de modo a que seja menos imprevisível.
Quando estudava no Liceu, observei inúmeros casos de amigas que se desentendiam cada vez que gostavam do mesmo rapaz. Um dia andavam de mãozinha dada no recreio, partilhavam calças e camisolas, iam juntas à casa-de-banho, e de repente, por causa de um "gajo giro" qualquer, arranhavam-se, puxavam os cabelos e trocavam bofetadas, tudo ao ritmo de gritinhos histéricos. Se o alvo do ciúme, o "gajo giro", não estava interessado em nenhuma delas, voltavam a ficar amigas, e caso o tipo viesse a namorar com uma terceira, começavam a "cortar-lhe na casaca". No evento de escolher uma delas, a outra junta-se ao grupo de inimigas da ex-amiga, e iniciam uma guerra de trincheiras, com muita intriga, má-língua, falatório nas costas e orelhas quentes.
Já crescidinhas, as mulheres transformam o ciúme numa espécie de direito de veto, de cláusula escrita a letras miudinhas no contrato amoroso que celebram com o seu homem. Pouco importa que seja apenas um namoro ou que se encontrem já amarrados pelas correntes do casamento; o ciúme das mulheres é igual, quer em frequência, quer em intensidade. Se estão com o namorado ou marido numa festa, e ele está entretido a conversar com uma desconhecida, começam a centrar as atenções no bate-papo. Se os dois aparentam estar a divertir-se, riem com vontade, olham um para o outro de alto a baixo, ela perde as estribeiras e intervém, sacando o parceiro pelo braço e dizendo em voz alta "com licença, este é meu, arranja outro sua lambisgóia". Os restantes convidados ficam boquiabertos, paira um silêncio desconfortável no ar, e tanto o homem como a tipa com quem ele trocava dois dedos de conversa ficam sem jeito. Se o homem reage, atirando com um "ó Maria de Lurdes, já viste a figura que estás a fazer?", é escorraçado com um arrayal de gritaria, com a parceira roxa de raiva, a gritar com ele e a bater com o pé, e se tiver à mão um copo, atira-lhe com conteúdo no focinho. Um homem que não se queira chatear, pega nela e vai embora. A festa está estragada na mesma. Pelo caminho é emprenhado pelos ouvidos logo dentro do carro, ou ficam ambos em silêncio durante toda a viagem - depende do carácter da mulher. Neste último caso, chegam a casa e aí a mulher...emprenha-o pelos ouvidos. Não há como escapar, e reagir só vai tornar as coisas piores. Não dá para negociar com as terroristas do ciúme.
Nenhuma mulher tolera que o seu namorado/marido tenha "amigas", especialmente se estas forem descomprometidas. Mesmo com as casadas, as mulheres ciumentas exercem alguma cautela, pois aplicam-lhes o mesmo princípio que aplicam a elas próprias: se a gaja é casada, o que tem para conversar com o meu marido? Se são elas a ter amigos, "são apenas amigos, e depois?" e se o marido protesta diz-lhe "não sejas parvo". As amigas do marido são todas umas pêgas, umas libertinas, umas interesseiras à caça dos homens das outras em pulgas para destruir um casamento ou uma relação. Se o homem está ao telefone e ela percebe que é com uma mulher, avança sobre ele e começa a perguntar em voz alta "quem é?". Se o homem se tenta afastar e a fazer sinais de que não quer ser incomodado, ela insiste e sobe de tom: "Quem é? Olha lá Vitor Manuel, vais dizer-me com que estás a falar ou vamos ter que nos chatear?". No limite arranca o telefone das mãos do desgraçado e desata a berrar: "estou? estou? quem fala fáxavôr???". Se são namorados e ele tem outra, podem terminar a relação, ou ela pode perdoá-lo, dependendo de quanto gosta dele. Se forem casados, e ela descobre a morada da amante, vai até lá com os filhos (se os houver) pedir satisfações, e se ela não abrir a porta desata a tocar a todas as campaínhas aos gritos "a vossa vizinha é um puta! anda enroscada com o meu marido!". Se descobre onde ela trabalha, não se inibe em ir lá e fazer um escândalo.
Os homens não ficam menos bem na fotografia quando são acometidos do virus do ciúme. Pode ser o mais educado, refinado e tolerante dos homens, mas exposto ao ciúme, torna-se mais agitado que primata sarnento e febril. Existem dois tipos de homens ciumentos: os explosivos e os implosivos. Os explosivos vêem a namorada/esposa a conversar com um pintarolas qualquer que lhe está a cantar a canção do bandido, chega perto de ambos, mete-se à frente do marmanjo e diz-lhe "ó amigo, volta lá para o buraco de onde saíste que esta já tem dono". Se for preciso andar à porrada, que seja, pois fora de controlo vale até arrancar olhos. Entre os explosivos, os piores são os mais calados. Estes não se queixam, não revelam sinais de fraqueza, mas quando menos se espera partem um copo uma garrafa de Super Bock na tola de algum espertalhão que está a cantarolar à sua garina. Os implosivos são aqueles normalmente mais educados, que normalmente passam a imagem de tipo civilizado e liberal. Depois de um jantar comemorativo onde participaram dezenas de pessoas, e onde a mulher passou a noite a dar trela a um desconhecido com boa pinta que ficou sentado à sua frente, voltam ambos a casa, e ele não diz uma palavra, enquanto faz umas trombas de meia-noite. Ela pergunta o que se passa, ele encolhe os ombros, ela pergunta outra vez, ela murmura "nada", e se ela insiste, ela grita "nada, porra! não me chateies". É apenas o menino a fazer birrinha, depois de ter visto a sua dignidade ferida pela veleidade da companheira.
As mulheres têm um hábito terrível, próprio da tendência que têm em falar dos seus ex-namorados. Nenhum homem gosta de ficar a saber dos detalhes das relações anteriores da mulher ou da namorada, e cria-se um mau estar sobre o assunto, bem como uma má vontade contra o indivíduo ou indivíduos em questão. Um dia vão os dois na rua e cruzam-se com um ex-namorado dela, que alheio às inconfidências da parte da ex-namorada, cumprimenta-os educadamente. Ela, meio atrapalhada, corresponde com cortesia, e apresenta-os um ao outro: "Uh...João, este é o Aníbal, sabes...o Aníbal?". O Aníbal estende a mão ao João, que já tão farto de ter ouvido falar do Aníbal, do tamanho do seu instrumento ou da sua posição favorita, hesita em estender-lhe a mão, e ao fazê-lo faz uma cara de enjoado e grunhe "muntoprare" ("muito prazer", em grunhês). O Aníbal pergunta "então, o que é feito?", e o João interrompe: "ah pois, pois, nós agora estamos com pressa, com licença". O Aníbal fica meio sem perceber o que aconteceu, e ela chama-lhe a atenção para os "maus modos". Mas quem a mandou contar ao João que o Aníbal a foi buscar um dia à hora de almoço no dia de S. Valentim e de seguida passaram a tarde numa suite da Quinta do Lago a comer morangos e a beebr champanhe enquanto se amavam no "Jacuzzi"?
Para um homem ciumento e irracional não há limites; para ele a parceira não podia ter feito melhor escolha, e os rivais são todos "uns palhaços, que nunca a respeitaram". Se passam um dia com um ex-colega de escola dela, um celibatário convicto, "bon-vivant", com uma vivenda na serra de Sintra e um Chevrolet Cabriolet na garage, o homem vai aos arames, mesmo que entre ela e o amigo nunca tenha havido qualquer espécie de intimidade. O amigo leva-os a almoçar, passam a tarde a visitar monumentos, vão até à praia, e ele mantém-se indiferente, amorfo, com ar de mal-disposto. Boceja a toda a hora, finge que dorme no carro, fala pouco e cada vez que diz qualquer coisa é normalmente um comentário desagradável. Os homens apaixonados e orgulhosos são como os galos: não permitem um rival na sua capoeira. E quanto ao teste de telefone? Se a companheira está na conversa com o que aparenta ser outro homem, ele aproxima-se e sussurra "quem é?". Ela coloca o indicador entre o nariz e a boca e aponta para o comunicador, como quem diz "cala-te lá que isto é importante", ele encolhe os ombros e vira as costas. No fim, vai ter com ele e explica: "desculpa, querido...era o sr. Gouveia que amanhã tem um encontro com o meu chefe e...", e de súbito ele interrompe com "quero lá saber? por mim até podia ser o Papa". Os homens reagem menos a quente, mas por dentro são um verdadeiro vulcão.
Existem dois tipos de ciúme: o ligeiro e o doentio. Os ciúmes ligeiros, os pequeninos, até conseguem ser queriduchos, bilú bilú o meu bebé tem ciuminhos é? É é, sua marota. Os doentios adquirem um carácter violento, homicida, até, e tudo depende na confiança que se tem um no outro, e sobretudo em si próprio. Se um dos amantes se sente inferior ao outro, e pensa que nunca vai conseguir encontrar alguém melhor, é possível que venha a sofrer na pele os ciúmes do outro. E o que fazer quando somos expostos às radições do ciúme? Bem, nada, e o melhor é minimizar os danos. Se formos nós os ciumentos, há que tentar evitar fazer figuras tristes, e se estivermos no lugar do receptor, manter a calma. Um ciumento é como um sonâmbulo, e é perigoso tirá-lo da transe.
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