Fim-de-semana de Lusofonia, pouco tempo para escrever e pensar noutra coisa senão participar deste Woodstock da comunidade portuguesa em Macau. Para manter o blogue à tona, nada como recorrer ao
artigo da última quinta-feira do Hoje Macau. Continuação de bom fim-de-semana e tolerância de ponto na segunda-feira!
Falar em investimento na China até há 30 anos era uma proposta risível. O país do meio era atrasado, pobre, politicamente instável, periférico e ainda um mistério aos olhos dos ocidentais. Actualmente a simples menção do nome China é suficiente para pôr em sentido empresários e multinacionais, que procuram por todos os meios entrar neste mercado tão apetecível. Com um controlo estatal onde a regra de ouro é o estímulo da economia, e uma numerosa mão-de-obra em regime de semi-escravatura, é impossível ignorar a relação entre o custo e a produção. As diplomacias ocidentais fecham os olhos a certos princípios que outrora consideravam fundamentais, tudo em nome da saúde financeira das multinacionais de que as suas finanças públicas tanto dependem, e o regime chinês abre a porta a quem queira tratar de negócios e faça o menor número de perguntas possível.
Da massa humana que compõe a China, há um grosso que vive ainda abaixo do limiar da pobreza. Centenas de milhões de trabalhadores migrantes trabalham de sol a sol para mandar a quase totalidade dos seus parcos rendimentos para as suas famílias a milhares de quilómetros de distância, que o vêem uma semana por ano, e que dele dependem. Do produto do trabalho destes milhões lucram uns poucos empresários, os mais bem posicionados, com ligações às elites e ao partido único, e é para esses que o “milagre económico” se pode chamar mesmo de “milagre”. Os outros lutam, tentando a pulso chamar a si uma parte do novo Eldorado chinês, e pelo caminho a obsessão pelo sucesso leva a que se deixe de distinguir o bem do mal, e os que ficam pelo caminho deixam muitas vezes atrás de si um rasto de sangue.
Esta vontade louca de enriquecer muito e depressa está a levar a uma desumanização nunca antes vista na era contemporânea. Vale tudo em nome do lucro, desde matar, roubar, raptar crianças para lhes colher os órgãos como se fosse fruta que se apanha num pomar e vendê-los no mercado negro, ou vender os filhos a troco de dinheiro para comprar acessórios de luxo. Tempos houve em que vender um filho para que os restantes não morressem à fome era um cenário dramático, próprio da mais lamentável das misérias. Hoje é um pretexto para adquirir um telemóvel de última geração ou outros produtos de marca. O crime prolifera em nome da facturação, e já nem a sombra negra da pena de morte parece intimidar os criminosos. Há quem defenda que abolição da pena de morte faria disparar a criminalidade, mas tenho sérias dúvidas. Basta observar a expressão facial dos homicidas, corruptos, traficantes ou piratas quando ouvem a sentença: derrotados, mas resignados. Arriscaram e perderam, mas podiam ter ganho, e alcançado o tão ambicionado sonho de fazer parte desse “milagre”. É como um jogo de roleta russa.
O estado social é uma miragem, é vigora lei do cada um por si. Uma ambulância que venha ao socorro de um sinistrado deixa-o a esvair em sangue no local da ocorrência se ninguém adiantar o pagamento das despesas hospitalares, e sai mais barato atropelar alguém mortalmente do que suportar os custos do internamento e uma eventual indemnização. As seguradoras são uma fachada, um negócio como outro qualquer, que não está ali para dar dinheiro a ninguém, e a invalidez ou a doença crónica é um bilhete de ida sem volta para a indigência e mendicidade. O homem é uma peça de uma complexa máquina, e se não serve, deita-se no lixo, como qualquer roda disfuncional da engrenagem. Este é um estado que se diz “comunista”, uma república popular, uma “ditadura do proletariado”. Sob a capa da designação muito solidária de “socialismo de mercado”, pratica a mais selvagem das formas de capitalismo de que há memória.
A cobiça insaciável que leva a não saber onde parar pode parecer estranha aos nossos olhos de ocidentais. O que leva alguém que tem uma fortuna que nunca conseguiria gastar se vivesse quatro ou cinco vezes a querer mais? É preciso ter em conta que no início dos anos 60, enquanto a Europa renascia das cinzas da guerra em todo o seu esplendor, na China morriam milhões de fome. O ano de 1969 é marcado pela chegada do Homem à Lua e pelo Festival de Woodstock, e se na América se vivia o Verão do amor, na China a loucura da Revolução Cultural atingia o auge. Para o povo chinês, as últimas cinco décadas do século XX deram para tudo, menos para fazer dinheiro. A máxima “ser rico é ser glorioso” voltou a vigorar no início do terceiro milénio – mesmo que de uma forma tão reprovável.
O sucesso que este modelo chinês representa acolhe a aprovação de outros modelos económicos fracassados ou ultrapassados, mas esta desumanização que acarreta parece ser um preço demasiado alto a pagar. Não queremos viver num mundo onde para que uns poucos tenham a oportunidade de “enriquecerem e serem gloriosos” tenhamos que abdicar de valores como a solidariedade, o voluntarismo, a caridade ou a entreajuda. Chegaremos ao dia em que nada é grátis, e ao ridículo de pagar para perguntar as horas a alguém? Quero acreditar que a seu tempo a China vai meter um ponto de ordem nesta situação, mas estando aqui mesmo em baixo, em Macau, convém ficar atento para que não se imitem os maus hábitos.
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