Sábado à noite. Regressado de mais um Festival da Lusofonia, actualizo o blogue, e preparo-me para sair. Antes disso, deixo o queijo na cozinha para o sr. rato, como havia feito nos dois dias anteriores, para gaúdio do roedor, que limpou o prato. Regressado a horas proibitivas, reparo que o queijo continua intacto. São cinco da manhã, portanto talvez o sr. rato não tenha voltado da discoteca rateira, onde ainda dança ao som de "Hey Mickey", de Toni Basil, e de "Rat in mi kitchen", dos UB40. Vou dormir, quem sabe se pelo fim da manhã encontro o prato limpo. Foi perto do meio-dia que apertou a larica, e levanto-me para atestar o depósito, e noto que o queijo continua lá, na sua alva candura, sem sombra de dentes de rato. Estranhei, mas insisti em mantê-lo ali. Quem sabe se o sr. rato conheceu uma rata na tal discoteca e foram para casa dela fazer um "one-rat stand"?
Domingo ao fim da tarde. É a última noite da Lusofonia. Despeço-me do festival, e chegado a casa publico as fotografias que tirei nos três dias de festa no Largo do Carmo. Tinha-me esquecido por completo do sr. rato e do queijo, e só quando vou à cozinha reparo que o queijo continua ali, passado um tempo recorde de 24 horas. Fui dormir, e ao acordar, tudo na mesma. Que diabo. O sr. rato tinha sido tão afoito das primeiras vezes que lhe deixei um prato de Mascarpone, que julguei que regressaria todos os dias para mais do mesmo. Não é todos os dias que sr. rato come refeições grátis que não tenham saído do seu restaurante predilecto: o latão do lixo. Passou-se toda a segunda-feira, e o queijo começava a ficar com um aspecto próprio de que esteve submetido à temperatura ambiente durante quase dois dias completos. Resolvi deitá-lo fora, e comecei então a conjecturar sobre o que teria acontecido ao sr. rato. Não porque tivesse saudades suas, mas porque tratando-se de um rato, durmo mais sossegado sabendo por onde anda, o que faz, e o que come do que sendo surpreendido por ele quando menos espero.
Terça-feira, dia de trabalho. Levanto-me pouco antes das oito da manhã, ligo a televisão e acendo a luz da cozinha, de modo a tratar do mata-bicho matinal. É aí que deparo com um cenário inédito: o lixo do caixote está e mexer-se! Até uma criança de dois anos sabe que o lixo não se mexe sozinho, e tinha a certeza que estava bem acordado; os meus sonhos não costumam incluir lixo animado. Seria o sr. rato, a vasculhar no caixote, e não seria o queijo que estaria à procura. Esse tinha sido mandado no saco do lixo anterior. Estaria à procura de cascas de qualquer coisa, deliciando-se com os resíduos do interior das latas, com os restos do iogurte deixados no pacote, enfim, da porcaria que deitamos fora. Uma vez rato, sempre rato, e soubesse o lixo cantar, juntavam-se em dueto numa nova versão de "Só nós dois é que sabemos". Regressou depois de um fim-de-semana prolongado, mais um "lost weekend", onde passou o tempo a fazer coisas de rato. Prefiro não imaginar quais, nem onde. Afinal o bicho anda aqui por casa todo nu, passando por cima de tudo o que está ao alcance da minha vista, e da sua (dele, do sr. rato, não da sua, prezado leitor ou leitora).
Não foi preciso olhar para o lixo em movimento durante mais de dez segundos para que se confirmassem as minhas suspeitas. Fresquinho do lixo, o sr. rato agarra-se ao cano do lava-loiça, fita-me por um instante, e salta para debaixo do balcão da cozinha, em jeito de ninja, como se conhecesse em detalhado pormenor os cantos onde arrumo as caixas, os sacos e a bilha do gás. Perante isto, fiquei sem saber o que pensar, e portanto não pensei. Encolhi os ombros, retirei a última porção de Mascarpone do frigorífico e servi-a ao sr. rato. Fui buscar o telemóvel com a esperança de poder finalmente captar uma imagem da sua castanha figura. Dois minutos depois aproximei-me da cozinha com pézinhos de lã tamanho 45 e biqueira larga, espreitei pela porta encostado à parede do lado de fora, e apercebi-me que metade do queijo já tinha sido comido, mas do sr. rato, nem sombra. Retirei-me e voltei a espreitar um minuto depois, e o queijo havia-se evaporado. Nem sei bem se o comeu mesmo ali ou se o levou para o seu esconderijo noutro canto mais escuro e recôndido da cozinha para poder saboreá-lo em paz. Mais uma vez o sr. rato, mestre da decepção, levou a melhor.
Os dois dias em que fiquei sem saber por onde andava o sr. rato cheguei a temer o pior - para ele, claro. Tivemos alguma chuva, e foram várias as vezes em que dei com um cadáver de rato aqui no pátio. Não sei se gostaria que o sr. rato morresse, ainda estou indeciso quanto ao que lhe desejar, mas agradava-me que encontrasse outro lar para assombrar. Em retrospectiva, penso que me senti um pouco nostálgico quando deixou de aparecer durante mais de dois dias. Temi ter ofendido a sua rata honra, de lhe ter ratado na dignidade. O Mascarpone acabou-se, e já me sugeriram que lhe dê fruta sumarenta - maçã ou tangerina - ou cenoura, ou talvez devesse tentar um pouco de pão. Hoje cheguei a casa por volta das 6:30 da tarde, e ao abrir a porta ouvi-o a fugir, e na cozinha encontrei o detergente da loiça derrubado. O sr. rato não tem horas, aparentemente. Seria simpático da sua parte se me deixasse a par da sua agenda.
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