quinta-feira, 20 de junho de 2013

O "dar na veia" virtual


Vi ontem uma reportagem no programa “O nosso tempo” da RTP sobre indivíduos viciados em jogos online. Um tema interessante, um “case-study” na área da psicologia. Quando se tratam de crianças ainda se aceita, e pode ser entendido com apenas uma “fase”. Os putos depois fartam-se daquilo e vão fazer outra coisa, e se não forem levam dois safanões e deixam de ser parvos. Mas o que leva um adulto normal e aparentemente na posse de todas as suas faculdades mentais a ficar viciado nos jogos da internet ao ponto de requerer tratamento? Num dos casos o entrevistado, um ex-viciado da rede, esteve internado durante oito meses numa instituição psiquiátrica! Incrível. Como foi possível chegar a esse ponto?

Todos conhecemos casos de viciados “clássicos”, ora dependentes de substâncias como o álcool ou a droga, ora jogadores compulsivos, onde o casino é o antro de perdição. A dependência física provocada pelas substâncias ou a comprovada problemática do vício do jogo têm um efeito devastador sobre os indivíduos, as suas famílias e a própria sociedade em geral, levando-o a uma espiral de decadência que o deixa fisicamente debilitado ou arruinado. Para fazer face a estes problemas e reabilitar as suas vítimas retirando-os da esfera da marginalidade existe um conjunto de soluções, algumas com eficácia comprovada. O problema do jogo ou da droga foram há muito identificados, e os profissionais encarregados da recuperação das vítimas destes flagelos têm uma respeitável “escola”, que produz um leque vasto de soluções eficazes. Mas o que fazer com um tipo que passa o dia em frente ao computador entretido com joguinhos, ao ponto de perder a noção do tempo?

Nunca entendi bem porque ficam as pessoas viciadas no jogo, perdendo o que têm e até o que não têm nas mesas de jogo e afins, ainda para mais tendo consciência que estão a deitar dinheiro fora, e é muito improvável que o recuperem. Eu próprio ainda suspiro pelas 200 patacas que deixei numa “slot-machine” do Lisboa, e posso ficar horas a assistir ao “big and small” sem que por isso me dê vontade de apostar. No entanto aceito a teoria de que o cérebro humano tem uma queda para o jogo, e desde tempos remotos que a batota tem seduzido o Homem e constituído fonte de problemas. O que é mais difícil de aceitar é que alguém fique horas a destruír frotas espaciais inimigas imaginárias ou a plantar hortas virtuais sem que gaste ou ganhe um tostão, ou que daí resulte algo de realmente produtivo ou sequer palpável. Muito boa gente gasta parte do seu dia nesses jogos, e tem o discernimento para interromper a brincadeira e ir fazer o que tem que fazer. Todos sabemos que se não conseguirmos passar do nível 20 de uma merda de jogo qualquer, este lá outra vez amanhã à espera de outra tentativa.

No entanto tenho que reconhecer mérito aos programadores que inventam estes jogos, alguns muito imaginativos e até se pode dizer….”viciantes”. Só que aqui por “viciantes” quero dizer que dêm gozo jogar, que mantenham um tipo entretido durante uma hora ou duas enquanto não sai o jantar ou se ainda é cedo para dormir, não ao ponto de manter alguém agarrado 48 horas consecutivas ou ao ponto de requerer internamentos de oito meses e tratamentos de choque. Se no caso da droga ou do jogo o indivíduo recuperado evita voltar a procurar estupefacientes e entrar novamente num casino, o que acontece a um ex-viciado em jogos online? Nunca mais vai à internet para o resto da vida? Parece-me improvável, e até um pouco estúpido. Só faltava cortar-lhe os dedos, não vá precisar de fazer uma consulta na Wikipédia e use isto como pretexto para entrar num jogo de “trivia” e fique novamente “agarrado”.

Curiosamente o Facebook é fértil neste tipo de jogos que cativam as massas, cuja maioria, felizmente, joga com moderação ou fica farto a certo ponto e nunca mais joga. Há uns anos tivemos a moda do Farmville, que deixou milhões de cibernautas insuspeitos de todos os quadrantes e estratos sociais a plantar tomates e tratar de animais virtuais, obtendo assim pontos que depois lhe permitiam comprar celeiros e tratores, e “ajudando os vizinhos” (outros jogadores seus amigos no Facebook) ou “oferecendo-lhes prendas” de modo a poder passar de nível e “ampliar a quinta”. Conheci indivíduos que tinham duas ou mais contas no Facebook para poderem oferecer prendas raras a si mesmo. Claro que por muito habilidoso que se fosse neste tipo de agricultura de sofa, não se ganhava realmente nenhuma quinta com um lago de cisnes e uma árvore de açaí em frente à granja. A moda depois passou, e não conheço ninguém que ainda jogue Farmville. Os seus criadores ainda se lembraram de uma “Farmville 2”, e existem outros jogos semelhantes, mas a moda já era. Deu-se o exôdo do campo para a cidade, e as quintas foram abandonadas. Paciência.

Depois disso tivemos o “Angry Birds”, a resposta da Apple para rivalizar com os jogos do Facebook, e que coincidiu com a moda dos “smartphones”. Este “Angry Birds”, que nunca joguei e feria o meu sentido de estética, era tão popular que originou “merchandise” em forma de t-shirts, mochilas escolares, chávenas de café e mil e uma coisas. Todo o mundo se entretia em catapultar passarões para cima de porcos que lhes tinham roubado os ovos onde estavam a suas crias ainda por nascer. Ou qualquer coisa assim. Como, repito, nunca joguei, perdoem-me se estou a cometer alguma heresia. O jogo já tinha passado de moda quando chegou às consolas e aos PCs. As crianças de 4 anos de idade e menos ainda lhe acham alguma piada, mas passados alguns minutos a atenção vira-se para outra coisa qualquer mais colorida. Perde consistência a teoria de que estarei a offender algum leitor revelando a minha ignorância sobre o conteúdo e objectivo do jogo, portanto. Fico mais descansado.

Actualmente temos o “Candy Crush”, que é uma versão revista e aumentada do fenómeno. Quando se vê alguém a usar o iPhone ou o iPad em qualquer sítio, existe 85% de possibilidade que esteja a jogar “Candy Crush”. Os criadores tiveram a argúcia de elaborar centenas de níveis, e não sei se é possível chegar ao fim do jogo (não conheço ninguém). Assim garante-se que o ópio chega para todos e não acaba depressa. De todas as modas, esta foi a que aderi com mais ou menos convicção, mas nunca ao ponto de gastar mais de 20 minutos por dia ou um pouco mais ao fim-de-semana. Como sou um diletante por natureza e irrita-me ficar muitos dias sem conseguir passar um nível, é provável que fique farto muito em breve e parta para outra. Mas quando o “Candy Crush” for parar ao grande ferro-velho dos jogos electrónicos, surgirá com toda a certeza outro. Existe agora um tal de “Bubble Witch”, que promete, tendo já feito mexer os entendidos. Se daqui a um mês for considerado a maior invenção da humanidade depois da roda, lembrem-se que foi aqui que ouviram falar pela primeira vez (os que já não conhecem, claro).

O facto de estar aqui a falar de tudo isto e os leitores perceberem do que se trata é indicador da crescente influência deste tipo de entretenimento nos nossos dias. No tempo das Ataris e dos Commodores, ou mesmo da Sega e da PlayStation, estes jogos eram sobretudo destinados aos mais pequenos ou indivíduos imaturos e desocupados (depois o Wii mudou tudo, e pode-se mesmo dizer que foi um marco na mudança dos costumes). Hoje temos gente de todas as idades a procurar estes jogos para preencher as suas horas de lazer, as horas mortas no trabalho, ajudar a tornar menos aborrecida uma longa viagem de autocarro ou o tempo que se espera pela consulta no médico. É verdade que ficamos desumanizados de cabeça baixa a mexer em botões e com os olhos no ecrã, alheios ao que nos rodeia e evitando o contacto com outro ser humano, mas o que fazer perante a implacável marcha da tecnologia? Recusar-se a aceitar o progresso é teimosia. Rejeitar o mundo que se renova é um sintoma de que se está com os pés para a cova. Agora é preciso apenas que se saiba quando parar, dizer basta, largar o PC, o smartphone ou seja lá o que for, levantar novamente a cabeça e encarar todo o resto – que é muita coisa. O dia em que não consigamos impôr estes limites acabamos como aqueles tipos que “injectam jogos para a veia” e depois recorrem à medicina para os tirar do buraco. E isto é o que se chama fazer uma figura triste, meus amigos. Um figurão.

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