“Mao: a história desconhecida” é uma extensiva biografia do fundador da República Popular da China, Mao Zedong, e provavelmente o documento mais completo sobre um dos maiores líderes mundiais do século XX, aquele que ficou conhecido por “grande timoneiro”. A obra de 832 páginas, no seu título original “Mao: the unknown story”, é da autoria de Jung Cheng e do seu marido, o historiador irlandês Jon Halliday, e a primeira edição data de 2005. A versão portuguesa foi traduzida por Inês Castro e editada pela Quetzal.
Jung Cheng nasceu na China em 1952, em Yibin, província de Sichuan, e foi estudar para a Universidade de York em Londres no ano de 1978 com uma bolsa do governo chinês. Em 1982 recebeu um doutoramento em linguística, tendo-se tornado o primeiro cidadão chinês a receber esse reconhecimento de uma universidade britânica. A sua obra mais conhecida é “Cisnes Selvagens”, de 1991, uma auto-biografia histórica que versa sobre três gerações de mulheres na China pós-revolucionária. O livro vendeu mais de 10 milhões de cópias em todo o mundo e encontra-se banido na China. Tendo vivido quase até aos 30 anos na China, Jung Cheng foi testemunha privilegiada de alguns dos acontecimentos mais dramáticos do século XX, nomeadamente a Revolução Cultural, que atravessou toda a sua adolescência. Os acontecimentos da Revolução Cultural e os seus reflexos na sociedade chinesa dos dias de hoje continuam a ser um assunto tabu, e apesar do regime admitir timidamente que se tratou de um erro, está longe de ser um assunto encerrado, ou que reúna consenso.
“Mao: a história desconhecida” não é um livro simpático para o mentor da RPC, que dirigiu desde a fundação em 1949 até à sua morte em 1976. Os vinte e sete anos que Mao esteve à frente dos destinos da nação mais populosa do mundo são repletos de equívocos e erros estratégicos, marcados por um planeamento deficitário e um julgamento desajustado da realidade do país. Para os autores Mao terá sido o responsável pelo maior número de mortes em tempo de paz: calcula-se que cerca de 70 milhões terão sucumbido durante essas três décadas, um número que pode pecar por defeito. Há quem fale de mais de 100 milhões, a maioria vítima da fome. O regime não apresenta números oficiais, e não seria de esperar que o fizessem.
O periodo mais controverso, como já referi, é o da Revolução Cultural, e que certamente os leitores do livro terão mais curiosidade em saber os detalhes que o livro descreve, alguns deles até então desconhecidos (p. 561-677 e fotografias, algumas inéditas). A Revolução Cultural é um bom exemplo de “case study”, uma empreitada única na história da humanidade (imitada contudo pelos Khmer de Pol Pot no Cambodja, mas sem o mesmo impacto), que passou por uma subversão de valores que qualquer pessoa no seu perfeito juízo consideraria impraticável em qualquer sociedade. Foi um periodo de “anarquia de estado”, se me permitem a designação, que se contradiz em termos. O período que durou desde 1965 até à sua morte onze anos depois, serviu sobretudo a Mao para consolidar o seu poder, mas numa perspectiva macro, os excessos da Revolução Cultural são responsáveis pelo atraso estrutural e functional que ainda se verifica na China. Curiosamente a Revolução teve uma respeitável legião de adeptos no Ocidente, mesmo entre intelectuais e idealistas amantes dos valores da liberdade. O desconhecimento da realidade e do impacto que teve na sociedade chinesa podem-lhes servir de desculpa. Estão perdoados.
A ideia que fica da personalidade de Mao Zedong, que estará entre as dez maiores figuras da História do século XX ao lado de Winston Churchill, José Estaline, Adolfo Hitler ou Gandhi, é a de um idealista, um homem que se regia pelos princípios que considerava correctos. A sua vida até à chegada ao poder, aos 56 anos, é notável. Homem inteligente e educado, um reconhecido estratega militar e um pensador brilhante, um filósofo com uma veia artística evidenciada nos seus trabalhos de caligrafia, com uma respeitável obra literária, composta de poesia e ensaios políticos. Quem já leu o compêndio dos seus pensamentos fica rendido ao seu génio, mesmo que não se identifique com o conteúdo ideológico. Oriundo de famílias humildes e tendo passado a infância durante um período conturbado da História da China, é apenas natural que se tenha revisto na utopia do socialism como forma de atingir o equilíbrio social e corrigir as desigualdades. Não foi fácil para ele, nem seria para qualquer outro, liderar um país da dimensão da China, mas não se pode sentir a decepção de que o seu lugar na História teria sido outro caso fizesse a revolução e deixasse o poder noutras mãos. Seria mais condizente com o bom senso com que pautou a sua vida cumprir a sua missão como revolucionário e deixar a política para os politicos. O “poder” foi o ópio de Mao, e a sua maior obsessão.
A crítica de Mao e da forma como orientou a nação chinesa que finalmente unificou ainda não é vista com bons olhos no continente, apesar da actual geração de líderes do PC chinês reconhecer que nem tudo correu bem durante o Maoismo. O culto da personalidade está ainda bem vincado na sociedade chinesa, com o seu retrato a destacar-se no centro da Praça Tiananmen, o seu corpo mumificado depositado num mausoléu e a sua imagem nas notas de yuan, a denominação fiduciária do país. Para muitos chineses questionar o estatuto de herói nacional que Mao adquiriu é quase considerado um insulto, mesmo que a estima seja originada pela ignorância dos factos. Os mais informados abstêm-se de fazer comentários ou elaborar opiniões menos consensuais. A forma como a imagem do fundador da RPC é utilizada hoje pelo regime serve sobretudo para reforçar o exercício do poder pelo partido único, contando para tal com o patriotism e o espírito revolucionário do povo, nunca deixando de recordar as privações e humilhações a que foi submetido durante a ocupação por potências estrangeiras, ou das injustiças praticadas durante os tempos imperiais. O mais irónico é que o próprio Mao dificilmente aprovaria o rumo que os seus sucessores escolheram para o país que fundou. Demasiados chás dançantes para o seu gosto, e pouca revolução.
Recomendo a leitura do livro, que pode ser aleatória. A vida de Mao e a sua liderança do país são compostas de incidências tão díspares que dá a sensação que é obra de mais de um indivíduo. A obra tem um valor respeitável como documento histórico, como provam aliás as notas e as referências bibliográficas no final. Os críticos apontam o dedo à forma tendenciosa como os autores analisam Mao e o seu lugar na História, mas atendendo que Jung Chang é tida na China como uma dissidente, é natural que não glorificasse o maoismo. Como qualquer documento histórico, este é passível de análises diversas, e não há qualquer meio de assegurar que os factos descritos são rigorosos e definitivos. Diz-se que a História “é escrita pelos vencedores”, mas dificilmente encontramos um vencedor nesta história. Há quem considere que os excessos cometidos por Mao foram um mal necessário, uma forma de “limpar a casa”, garantir a unidade do país e sua soberania. Afinal não é fácil manter de pé em vinte anos o que demorou cinco milénios a levantar. Agora fica ao critério de cada um se os meios justificaram os fins, e se os sacrifícios não foram em vão. Leia “Mao: a história desconhecida”, e tire as suas conclusões.
Sem comentários:
Enviar um comentário