sexta-feira, 10 de maio de 2013

A morte fica-nos tão bem


Como é hábito às sextas, fica aqui o artigo da edição de ontem do Hoje Macau. Bom fim-de-semana.

Pode soar a conversa de bêbado, mas não existe verdade mais absoluta: a única certeza que temos nesta vida é que vamos morrer um dia. É deprimente se ficarmos a pensar nesta inevitabilidade todos os dias, mas é algo que retemos no nosso subconsciente. Não somos imortais, e por mais invulneráveis que nos sintamos agora, vai chegar o dia em que o nosso corpo diz basta, e passamos a matéria, ao composto que forma o solo que todos os dias pisamos, indiferentes à complicada cosmética que o constitui. Hoje estamos aqui a rir, a comer, a beber, em suma, a viver. Amanhã, quem sabe, somos um festim para os vermes. Não é justo, mas não há nada a fazer. Corremos contra o relógio.
Os mais religiosos confortam-se com a perspectiva de uma vida etérea, uma recompensa pelo incómodo. Existe uma tendência para acreditar cada vez mais nesta vida eterna à medida que envelhecemos, quando vamos vendo a areia da ampulheta a definhar. Não me parece muito lógico que andemos neste mundo apenas 70 ou 80 anos e depois passemos uma eternidade no outro. Sabem o que é uma eternidade? É muito tempo, mesmo. Infinito mais um. Não faz lá muito sentido. Quem não é religioso contenta-se apenas em levar o melhor desta vida, e não se preocupa muito com essas supostas contas a prestar ao criador. Viver dia após dia, e depois de se apagar a luz, acaba-se a festa. Party’s over, boys. Time to go home.
Não me fascina por aí além o que acontece depois da morte. Tenho uma ideia muito própria do que é estar morto: é mais o menos o que se passa antes de nascermos. Como não me lembro onde estava antes de nascer, não me faz muita diferença. A fragilidade da vida humana faz de mim um pessimista por natureza. Hoje estou aqui, junto dos vivos, amanhã não sei. Não quero dizer que não devemos fazer planos para amanhã, para a semana que vem ou para daqui a dez anos, mas não convém levar as coisas muito a sério. O melhor mesmo é acrescentar aquele bordão com que nós portugueses tanto gostamos de acabar uma frase: “…se Deus quiser”. Voltando ao início deste texto, certezas só há uma.
O ciclo da vida que a nossa natureza de animal social nos impôs é injusto. Trabalhamos toda uma vida, durante o seu esplendor, e só nos é dado algum descanso quando estamos velhos, acabados, decadentes, vulneráveis e impotentes. O filme de 2008, “O estranho caso de Benjamin Button”, que fez tanto sucesso, apresenta uma alternativa convidativa: e se fosse ao contrário? E que tal iniciarmos esta vida quando somos velhos, e fazermos o trajecto oposto, até eventualmente desaparecermos na forma de recém-nascidos? Ia ser interessante. As mulheres iam sentir-se mais atraídas pela pele macia e pelo acne do que pelas rugas e pelos cabelos brancos. A adolescência ia ser sinónimo de experiência. Os deprimentes asilos seriam substituídos por jardins de infância. Seria um fim mais tolerável, pelo menos.
O espectro da morte paira sempre sobre nós. É trágico quando alguém em plena força da vida é morto num acidente ou em qualquer tragédia. É muito mais difícil de aceitar quando se trata de um adolescente ou de uma criança. Quando era mais jovem e visitava o cemitério lá da terra sentia sempre um arrepio na espinha quando passava pelo talhão reservado às crianças ou aos recém-nascidos. Numa das lápides lia-se: “o Céu ganhou mais um anjo”. É poético para quem está de fora, mas não há dor maior para uns pais do que perder um filho, especialmente se for na primavera da vida. É uma falta que se sente todos os dias, por mais frios ou realistas que tentemos ser. É triste pensar que ali jaz o que fora outrora um ser vivo a que nunca foi dada a chance de viver, de sentir prazer e dor como nós, de enfrentar esse desafio que é a vida, que desejamos que seja sempre o mais longo possível.
O nosso tempo é marcado pela mais cruel e injusta das doenças: o cancro. É deprimente pensar que um simples diagnóstico nos pode fazer passar de um ente são e cheio de vida a um cadáver, numa questão de poucos meses. Todos temos um familiar, um amigo, um conhecido que perdemos para o cancro, e o facto de sabermos que não somos imunes deixa-nos expostos, rendidos, cabisbaixos e humildes. Irrita-nos saber que entre os maiores feitos da humanidade não se inclua uma cura para este mal. Existe um tratamento, mas o sucesso depende de uma série de factores no qual se inclui a subjectiva “sorte”, e a taxa de sucesso não é das mais animadoras. É caso para perguntar “que merda de doença é esta?”. Se existe realmente um criador, fará tamanha crueldade parte do Seu plano? Os religiosos que respondam.
Em Macau não gozamos de uma qualidade de vida por aí além. A elevada densidade populacional, a poluição, a falta de espaços verdes e o sistema de cuidados de saúde deficitários levam a quem queira viver muito tempo e com qualidade de vida a tomar cuidados redobrados. Desconfiamos da comida que nos chega do imenso continente e que não nos inspira muita confiança. Podemos estar a morrer lentamente sem estar a dar conta disso. Quem tem dinheiro para cuidar da saudinha noutras paragens não pensa duas vezes, e quem é pobre ou simplesmente remediado fica entregue à tal “sorte”. Para quem não embarca em fatalismos, o melhor mesmo é aproveitar a vida enquanto é possível. Vamos lá então beber mais um copo, fazer uma ou outra loucura que quebrem a rotina e tornem a vida o seu inevitável e fatídico fim menos insuportável, vamos aproveitar enquanto estamos vivos. Amanhã logo se vê, mas outra vez é preciso lembrar: ninguém vai ficar por cá para sempre. Carpe diem, meus amigos.

2 comentários:

Unknown disse...

Quero deixar aqui os meus parabéns, porque adorei este artigo "A morte fica-nos tão bem". Carpe Diem :)

Leocardo disse...

Obrigado, Lila :)