O grupo Doçi Papiaçam di Macau levou hoje ao Centro Cultural a sua nova peça em patuá, "Amôchai Divoto", mais uma paródia aos costumes e à actualidade do território, e coincidentemente em ano de eleições para a Assembleia Legislativa, que se realizam a 15 de Setembro. Antes de mais nada gostava de dizer que gostei muito, ri muito, algumas vezes até às lágrimas, e as duas horas que o espectáculo durou foram pontualmente abrilhantados com momentos de puro génio. Posto isto penso que ficou algo por dizer. As eleições legislativas em Macau, que se realizam de quatro em quatro anos, têm características que serão únicas do mundo. Aspectos como a corrupção eleitoral, a compra de votos, as jantaradas oferecidas pelas associações ou o transporte até às urnas providenciado por algumas listas aos eleitores ficaram de fora. Não sei se foi por timidez ou mero esquecimento, mas o argumento poderia ter sido mais enriquecido satirizando estes preciosos detalhes.
Gostava de começar por falar do tema de abertura, da música de introdução ao genérico. Estranho, é o mínimo que se pode dizer. Não quer dizer que foi mau, mas tendo em conta a riquíssima tradição musical maquista, com um vasto reportório de música ligeira em patuá, qualquer coisa dentro do estilo de Armando Santos ou dos Thunders seria uma abertura com Chave de Ouro. Quanto ao argumento propriamente dito, foi mais uma vez estruturado na base de "Romeu e Julieta": dois amantes oriundos de famílias macaenses rivais procuram ultrapassar os obstáculos, contrariedades, reprovação dos pais, etc, etc. Pode parecer um modelo mais que visto, mas quem conhece Macau e a sociedade maquista conhece bem alguns casos concretos de "rivalidade" entre famílias locais. O macaense é orgulhoso por natureza, e uma simples discussão sobre quem faz o melhor Minchi pode ser suficiente para provocar desaguisados entre os clãs. Macau sã assi.
Quanto ao tema de fundo, as eleições, o enredo foi bem conseguido, apesar de alguma confusão inicial. As famílias rivais, os Salvino e os Serafim, apoiam listas diferentes, ambas encabeçadas por empresários chineses de Macau. As referências à facilidade com que algumas individualidades se candidatam a deputado pelo simples facto de ter dinheiro, apesar da inexperiência e a falta de preparação para exercer um cargo politico, ou a forma incondicional como alguns sectores os apoiam, à margem da componente ideologica ou do próprio programa eleitoral foram bem conseguidas. Em Macau muitas vezes apoia-se uma lista concorrente às eleições "porque sim", e pouco importa que o candidato tenha o perfil adequado para se sentar na Assembleia Legislativa. O mais importante é que uma vez lá chegando, o apoio sera devidamente recompensado. Pelo menos em teoria. Existe uma enorme sede de protagonismo aliado a uma vontade de se tornar conhecido. Mistérios do ego, que certamente encontram paralelo noutras paragens mais distantes. Política é igual em toda a parte, mesmo que Macau seja revestida de algumas características especiais.
Quanto às interpretações, nota-se que o encenador Miguel Senna Fernandes preparou os actores com esmero. Os cabeça-de-lista são Pau Cheng Kit (Machi Chon) e Augusto Lam (Lou Pui Leong). Os dois actores, presenças regulares nos Doçi nos últimos anos, estiveram brilhantes no papel de dois simplórios novo-ricos e bem falantes mas com uma visão muito própria do fenómeno da política, e que disfarçam mal a intenção de usar um eventual lugar de deputado em proveito próprio, ou dos seus interesses pessoais. Os candidatos são apoiados por duas famílias macaenses que transportam a sua rivalidade para o terreno da campanha. Paulo Salvino (Carlos Anok Cabral, agora mais magro) e Aninha Salvino (Fátima Gomes) dão a cara por um dos candidatos, tendo como antagonistas Bibito Serafim (Sharoz Pernencar) e Ercila Serafim (Marina Senna Fernandes). O desempenho dos actores foi esforçado e competente. É o mínimo que se pode dizer. Mas esmiuçemos alguns aspectos da representação das estrelas "maquistas".
Carlos Anok Cabral vai-se afirmando como recorrente nas peças dos Doçi, e Fátima Gomes é uma natural, que evidencia uma paixão e uma dedicação à causa do teatro em patuá. Sharoz Pernencar esteve muito melhor que no ano passado, e parece mais à vontade num papel que possa desenvolver e atribuír um cunho próprio. Corre menos bem quando lhe é dado um "momo" que se limita a dizer "agora Macau...", tecendo aleatoriamente considerações sobre a actualidade. Em suma, está mais à vontade como "character-actor" do que no género de "stand-up". Marina Senna Fernandes, que no ano passado tinha sido a minha preferida, voltou a encantar-me. Que talento, que presença em palco, que maravilha é vê-la representar. Terá passado ao lado de uma grande carreira, sem exagero. Com a formação adequada seria uma estrela de categoria mundial. O seu papel serviu-lhe que nem uma luva. Quase todos terão reparado que a sua personagem foi inspirada - decalcada mesmo - em Rita Santos, evidente nos gestos, no penteado e na indumentária. Se dúvidas restassem, cantou o tema Yue Liang, como a própria Rita Santos celebremente fez na Casa de Macau em S. Paulo em 2007 (veja
aqui o video). Para compôr ainda mais o "boneco", Sharoz foi o "seu" José Pereira Coutinho, se bem que em comum terão o facto de partilharem a etnia Indiana. Sei que Pereira Coutinho esteve este Sábado no Centro Cultural, mas não vi Rita Santos. Se lá esteve deve ter-se sentido em frente ao espelho, num tom acima. Adoro-a, Marina. Sou seu fã incondicional.
Os personagens principais, os tais amantes ao estilo de Romeu e Julieta, eram Amália "Mali" Salvino (Isabela Pedruco, uma das quatro irmãs Pedruco que venceram o concurso Miss Macau nos anos 90), e Ernesto "Nené" Serafim (José Basto da Silva). Isabela e Basto da Silva tiveram desempenhos competentes, dentro do mínimo que se pedia para os seus papéis. A falta de protagonismo deriva do facto de não lhes ter sido dado um papel humorístico. Foram remetidos à seriedade dos seus personagens. Alfredo Ritchie, José Carion Jr. e Luís Machado voltaram a marcar presença, e estiveram bem, habituados que estão a estas lides, demonstrando mais uma vez que o teatro em patuá é para eles uma paixão. Destaque para Sónia Palmer e Aleixo Siqueira no papel de um casal que foi viver para uma das moradias económicas em Seac Pai Van, e cuja exiguidade trouxe consequências para a sua postura. Um momento hilariante, e não vou estragar a surpresa para quem ainda vai assistir ao espectáculo este Domingo. Outro momento alto foi a crítica aos manifestantes "à Macau", com alguns personagens bem conhecidos do público em geral a surgirem na plateia empunhando cartazes, ao que se juntaram ainda outros "puxando a brasa à sua sardinha". Um momento que nos fez lembrar que em Macau a melhor maneira de ser ouvido é dando nas vistas.
Finalmente os videos, que já são uma componente indispensável do espectáculo. Os pequenos filmes realizados por Sergio Perez dão aos Doçi uma oportunidade para ir mais além, dando largas à imaginação e o mais importante, dando-lhes a possibilidade de fazer mais do que o palco lhes permite. Adorei o service noticioso, apresentado por José Luís Pedruco Achiam, e com destaque para o momento de opinião de José Rocha Dinis, que comenta habitualmente às segudas-feiras a actualidade de Macau no Telejornal da TDM. Apreciei o sentido de humor e o desportivismo do director do Jornal Tribuna de Macau, e quem sabe se podia aproveitar alguma daquela frontalidade em futuras aparições televisivas. É mais fácil justificar o que por vezes é injustificável recorrendo a uma pitada de humor. Outro momento alto foi o "guia de sobrevivência em Macau", apresentado por Paula Carion (curiosamente a Paula não domina a língua portuguesa mas está muito à vontade com o Patuá), e um tempo de antena eleitoral. Este ultimo foi um momento de chorar a rir, e o mais bem conseguido foi executado pelo próprio Miguel Senna Fernandes, que nem precisou sequer de abrir a boca, recorrendo apenas à expressão corporal. Talvez o grupo já tenha ouvido isto antes, mas penso que existe ali potencial para uma série televisiva humorística "Made in Macau", qualquer coisa na linha de "O Tal Canal". Existem meios humanos e técnicos, mas faltará talvez tempo (afinal são todos actores amadores) e mais importante que isso, audiências que justifiquem um projecto deste tipo. É pena, pois seria uma ideia revolucionária.
Gostei da peça este ano, como gosto sempre, mesmo quando tenho algo a apontar, ou algum comentário sobre qualquer coisa que podia ter corridor melhor. Este ano notaram-se as ausências de Germano Gulherme, ou "Bibi", um dos "monstros sagrados" do grupo nos últimos anos, e de Herman Comandante, um dos especialistas em mexer com os ponteiros do risómetro. Risómetro esse que esteve activo, e senti que o público gostou da peça, e saíu satisfeito. Uma dos melhores peças dos últimos anos, talvez superada apenas por "Côza Dotô" e "Sabroso, Nunca!". Os Doçi Papiaçam comemoram em Novembro 20 anos de existência, e prometem um evento especial para assinalar a efeméride. Fico satisfeito por saber, pois fui para o espectáculo de hoje à espera de fogos de artifício. Não vi fogos mas vi um bom espectáculo. Mais uma vez estão de parabéns.
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